Especialista em riscos e fraudes vê insegurança jurídica e influência do governo na legislação como obstáculos para quem se interessa em investir no País.

De um lado, 75% dos executivos brasileiros apontam que a corrupção impacta em suas organizações. Do outro, 78% consideram que as medidas anticorrupção aplicadas em suas empresas são eficazes. Essa discrepância é revelada pela edição 2021 do Global Fraud and Risk Report da Kroll, estudo da multinacional americana especializada em governança, riscos e transparência. “Há investimento, mas não está sendo tirado o melhor dele ainda”, afirmou Fernanda Barroso, diretora-geral da Kroll no Brasil. Para ela, atividades ilícitas, somadas a insegurança jurídica, questões tributárias e atuação do governo resultam em diminuição dos investimentos internacionais no País. Nesta entrevista, Fernanda comentou os resultados da pesquisa e os fatores que impede o avanço das medidas anticorrupção no Brasil.

DINHEIRO – O estudo global deste ano traz alguma boa notícia sobre o combate à corrupção?
FERNANDA BARROSO – No âmbito global, 74% do empresariado disse que os controles que possuem hoje são eficientes contra riscos de suborno e corrupção. No Brasil, o número é maior (78%). Significa que os investimentos feitos nos últimos anos, principalmente depois da Operação Lava Jato e do que a Lei Anticorrupção trouxe de prerrogativas para as empresas, avançaram. Esse é o ponto positivo.

Apesar desse avanço, a corrupção prejudica o desempenho das empresas no Brasil?
Os três principais pontos de ameaças ligadas a fraudes e a suborno no mundo são: ameaças de terceiros, em que a empresa não sabe quem são seus fornecedores e parceiros de negócios na cadeia de valor; ter vulnerabilidade em manter registros internos, contábeis e gerais; e ações de funcionários contra empresas. No Brasil, o ponto de não manter os registros internos ficou mais alto do que a média global, com 36% ante 31%. É algo básico ter rastreamento de como as ações foram efetuadas. A pesquisa também revela que um bom número de companhias globais (86%) usa proativamente data analytics e outras ferramentas para identificar riscos. Mas isso não está sendo usado de forma eficiente.

O que leva a essa situação?
Não adianta só investir em controles internos se não treinar funcionários e criar cultura organizacional que espelha seu investimento em ações antirrisco. Os funcionários são a primeira linha de defesa da empresa no combate ao ilícito. Se eles não se reconhecerem nesse papel, não adianta apenas aplicar recursos em hardware. Há investimento, mas não está sendo tirado o melhor dele ainda.

O cenário de corrupção é mais presente nas empresas nativas brasileiras ou também está bastante presente nas organizações estrangeiras que operam no Brasil?
Não há distinção. Tanto que as maiores multas e sanções da SEC (equivalente à Comissão de Valores Imobiliários no Brasil) são, em sua maioria, multinacionais atuando fora de seus países de origem.

O ambiente de negócios contaminado não está mais latente no Brasil então?
Não é exclusividade nossa. Melhoramos bastante. A cultura das empresas tem evoluído para garantir que exista transparência interna das informações e que não tenha atividades de corrupção que não sejam previamente identificadas e possam ser tratadas pelos controles internos.

“A corrupção existe tanto no ambiente público quanto no privado. No Brasil, ficamos com a impressão de que são só os agentes públicos envolvidos em atividades ilícitas” (Crédito: Mateus Bonomi)

Quando falamos em corrupção, as pessoas pensam em poder público. Temos um problema crônico incentivado pelo setor público?
Não faria essa afirmação. A corrupção existe tanto no ambiente público quanto no privado. No Brasil, nossa Lei Anticorrupção não considera as fraudes no setor privado como corrupção, como em outras nações. Ficamos com a impressão de que são só os agentes públicos envolvidos em atividades ilícitas. Mas não é verdade. Na Kroll temos clientes tanto no setor público quanto no privado, na mesma proporção. Mas a tipificação da lei reconhece apenas agentes públicos.

Uma mudança na lei faria diferença?
Sim, porque forçaria e pressionaria as empresas privadas sem controles adequados a adotar controles. Foi o que aconteceu com o setor público com a Lei Anticorrupção, com a Operação Lava Jato, com a nova lei 13.303, de sociedades de economia mista. Hoje, a corrupção em empresas é classificada apenas como fraude. Pode ser acionado o Ministério Público e outras frentes para investigação, mas é totalmente diferente. É processado o funcionário que cometeu alguma fraude. Vai para o penal como pessoa física. Sou favorável a uma legislação que tipifique a corrupção privada. Outro ponto é interpretar os dados para o benefício dos negócios. Sem isso fica difícil atuar frente aos riscos. Tem de ser descritivo esse processo, para usar 100% do que essa inteligência nos oferece.

A tecnologia tem sido aliada para melhorar processos e potencializar resultados. Temos boas ferramentas para isso?
Sim. Temos dois modelos: ferramentas próprias e contratações de soluções. O que ainda não está no patamar ideal é a forma de leitura das possibilidades que o data analytics fornece. Não adianta ter os dados se não há interpretação correta para benefício do negócio.

Falta mão de obra qualificada e vontade maior das empresas em ter equipes especializadas?
Com toda razão. E um ponto importante: o data analytics tem de ser transversal em todo negócio, não adianta só uma área ter uma visão. Vai perder aplicação dos insights.

É preciso descentralização.

O Brasil é o 94º de 180 países do Índice de Percepção da Corrupção, principal indicador de corrupção do mundo. E está estagnado. De fato não estamos evoluindo?
Não vemos essa estagnação. Esse é um índice de percepção. Não indica a realidade. A percepção é de que não houve avanço. A corrupção não tem sido tão noticiada. Continuamos vendo evolução. A percepção fica estagnada.

Então os órgãos públicos têm avançado nos controles de corrupção?
Têm avançado. Existem muitos estados com legislações específicas que regem a contratação de fornecedores com programas de compliance, por exemplo. Há um controle maior dos fornecedores, com análise de risco, de capacidade financeira, com monitoramento contínuo de ordem reputacional. E tudo isso mostra que a evolução continua. Várias federações mudaram as legislações neste ano para que houvesse melhores controles internos na contratação.

Ferramentas de controle como a Lei de Acesso à Informação (LAI) são consideradas importantes, mas frequentemente enfrentam barreiras. Estamos muito distantes de uma consciência anticorrupção?
Estamos distantes do entendimento da importância de divulgar essas informações públicas. Informações relevantes para nosso dia a dia são classificadas como confidenciais, mesmo com pedidos via LAI. Não ligo isso à corrupção. Há falta do entendimento da importância da transparência do nosso dia a dia, para que possamos como cidadão tomar decisões da nossa vida pessoal e as empresas possam tomar decisões sobre negócios, expansão, aquisições, entrada no País…

A corrupção afeta diretamente a economia. Isso ocorre em que grau, na sua avaliação?
Hoje temos um número das Nações Unidas, de que o valor global do suborno é estimado em até US$ 1,75 trilhão por ano, ou mais de 1% do PIB global [chega a 2% pelos dados do FMI]. Quando uma empresa vem investir no Brasil ela fica muito perdida sobre a segurança jurídica, sobre questões tributárias que tornam os sistemas mais complexos do que já são, sobre atuação governamental, como a política influencia a legislação e as regulações existentes.

O interesse de investidores diminui…
Tudo isso junto gera desconforto para investir em uma economia que parece ter zonas cinzentas, difícil de enxergar o que é de verdade. O interesse diminui. Vimos isso no ano passado. Este ano nem tanto, principalmente por causa de operações de M&A [fusões e aquisições], pois os ativos no Brasil ficaram mais baratos.

“A Lava Jato funcionou da melhor forma possível quando as investigações estavam em evidência. Agora existe questionamento sobre como foram aplicados os mecanismos de transparência e controle para evitar abuso nas operações” (Crédito: Newton Menezes)

O desenvolvimento dos conceitos ESG, que tem a governança como um de seus pilares, pode ajudar a mitigar a corrupção?
No Brasil isso é muito incipiente. Não temos regulação de créditos de carbono, regulações de benefícios que possam ser transferidos no mercado secundário, de uma empresa para outra… Na parte ambiental temos muito a crescer também. Por enquanto, na minha visão, o ESG é mais voltado ao compliance. A governança rege o programa de compliance e as políticas anticorrupção de um negócio, mas já estava existindo antes de existir o termo ESG de uma maneira consolidada. Tem evoluído para implantar controles internos mais eficientes para prevenir a atuação corrupta em vez de remediar, que acaba saindo muito mais caro e mais penoso para o negócio.

O período após a Lava Jato foi animador, com as empresas se preocupando mais com sistemas anticorrupção. Isso se manteve?
Tem havido uma evolução gradual. Houve um pico no momento em que a Lava Jato começou a envolver empr`esas grandes e as autoridades internacionais começaram a processá-las. Depois disso, houve evolução mais gradual e lenta. Mas existe sim. Para fornecer negócios, as empresas precisam desenvolver seus próprios controles internos, caso contrário não serão contratadas. Quem não estiver bem preparado nisso, perde o negócio. As empresas estão se profissionalizando.

O enfraquecimento da Lava Jato pode levar a um desinteresse desses controles?
O gatilho não foi a Lava Jato. Foi a Lei Anticorrupção. A operação funcionou da melhor forma possível no momento em que as investigações estavam em evidência, mas agora existe questionamento também sobre como foram aplicados seus mecanismos de transparência e controle, para que não exista também nenhum tipo de abuso nas operações. O questionamento é válido, mas não é o enfraquecimento da Lava Jato que impedirá a evolução.