Para o executivo que comanda a terceira maior farmacêutica do País, a indústria tem o papel de facilitar o acesso a remédios, mesmo com o aumento dos custos gerado pela pandemia.

São nas situações de extrema necessidade de atendimento, como a provocada pela pandemia da Covid-19, que é possível detectar a ineficiência do setor de saúde no País. Principalmente quando a lupa mira cidades distantes das principais metrópoles. É aí que se enxerga um cenário de terceiro mundo. A análise é de João Adibe Marques, presidente do Grupo Cimed e um dos maiores especialistas da indústria farmacêutica no Brasil.

O outro lado da ponta, na visão do executivo, está justamente na qualidade do sistema farmacêutico brasileiro.

Hoje, a Cimed ocupa a terceira posição entre as farmacêuticas do País. Há uma década, ocupava a 36ª posição. Reduzir de custos e aumentar a eficiência ajudaram a companhia a fechar 2020 com crescimento de 20% e faturamento de R$ 2 bilhões. A meta agora é dobrar a receita e alcanaté 2025. Para isso é necessário investimento. O grupo planeja aportar R$ 500 milhões no período de 2019 a 2023 para a construção de uma nova fábrica, em Pouso Alegre (MG), e dobrar de tamanho em relação
à planta atual. Até agora, foram investidos R$ 200 milhões. Em setembro, a companhia entrega a planta de comprimidos, que garantirá o salto de de produção das atuais 40 milhões para 60 milhões de unidades.

DINHEIRO — Como foi para a indústria farmacêutica lidar com a necessidade de garantir fornecimento de remédios à população durante a pandemia?
JOÃO ADIBE MARQUES — A indústria farmacêutica trabalha em ciclos. No verão, falamos sobre o inverno, e vice-versa. A pandemia chegou para a gente muito antes do que chegou para os brasileiros. Os fabricantes de matéria-prima estavam na região de Wuhan, onde surgiu o primeiro foco de coronavírus. Detectamos que alguns produtos para sistema respiratório poderiam ter alta demanda.

O que foi feito?
A primeira providência antes da pandemia foi antecipar embarques de insumos da China. Não demos férias coletivas no início de 2020 e aceleramos nossa capacidade produtiva para poder atender a demanda, caso viesse. Fizemos estoque de produtos acabados para essa indicação. Quando a doença chegou ao Brasil, a gente começou a sentir que as reações eram diferentes.

Qual o grande aprendizado deste período?
Quando começou a quarentena, o consumo do que a gente achou que iria explodir caiu. O distanciamento mudou o hábito das pessoas. Somos o maior fabricante de vitaminas do Brasil hoje, tanto em faturamento como em unidades. A cultura do Brasil é tomar vitamina quando fica doente. E, na verdade, ela serve para não ficar doente. A gente teve de mudar e bater muito forte nessa questão da prevenção. E os brasileiros começaram a entender o que era vitamina.

Como isso refletiu em números?
O meu principal produto, o Cimegripe, que é o terceiro MIP [Medicamento Isento de Prescrição] mais vendido hoje no Brasil, atrás de Dorflex e Maxalgina, teve queda de 40% no volume, porque ninguém ficou doente. Esse é um produto de 35 milhões de unidades ao ano. A gente trocou o produto para doença para produto de prevenção. Com isso, conseguimos crescer o dobro do mercado farmacêutico.

“O Sistema Único de Saúde tem avanços, dentro do que é possível esperar. Eu tenho orgulho do trabalho da Anvisa, que regula tão bem o setor” (Crédito:Leo Caobelli)

De quanto foi esse crescimento?
Cerca de 20%. Antes da pandemia, só o Cimegripe representava 18% do meu negócio. O setor de vitamina representava 10%. Hoje, significa 20%. A companhia tem hoje 40% de participação em genéricos, 35% de MIP/OTC e 20% de vitaminas. Esse segmento dobrou de um ano para outro. Só 6% da população brasileira consome vitamina. Desse total, 3% são de vitamina C efervescente. Os outros 3% são multivitamínicos. O grande desafio é a conscientização de que vitamina é um hábito de vida.

A Cimed tomou outras medidas para conseguir alcançar o crescimento?
Temos uma completa cadeia de verticalização. Desde a parte de embalagens, em que somos autossuficientes, até a distribuição própria, a maior do Brasil, presente em todos os estados. Nos tornamos uma empresa de sistema porta a porta no varejo independente de farmácias.

Como funciona esse sistema?
O Brasil hoje tem mais de 80 mil farmácias. Dessas, 60 mil são independentes. Essas, com nosso modelo, a gente atende direto. Eu vou na farmácia do bairro e ofereço crédito próprio. Somos um crediário de farmácias. A indústria, normalmente, pega o risco do distribuidor. Como a distribuição é nossa, nós tomamos o risco. Minha inadimplência é 50% menor que a do setor farmacêutico, entre 2% e 3%. A nossa é 1,3%. Em vez de eu vender R$ 100 mil para o distribuidor vender para a farmácia, eu faço 100 pedidos de R$ 1 mil. Por não ter intermediário, a gente consegue ser a melhor opção de rentabilidade para a farmácia.

O senhor, então, é uma espécie de Samuel Klein (fundador das Casas Bahia) da indústria farmacêutica?
Ele era um varejista. Eu não sou um simples varejista. Tenho um modelo de verticalização que me proporciona passar essa margem tanto para a farmácia como para o consumidor final. Nosso propósito é dar acesso aos medicamentos para um país tão pobre como o Brasil. Nós vivemos em uma bolha da classe média e classe alta. Mas na hora que você separa para a grande massa, o acesso a medicamento é péssimo. Por isso, nossa proposta é garantir acessibilidade a um custo baixo. E, com essa cadeia, consigo proporcionar.

Foi isso que ajudou a crescer em 2020?
Esse modelo de verticalização começou em 1988. Há 10 anos, a Cimed era a 36ª farmacêutica. Hoje, somos a terceira. O Brasil sofre muito com a ineficiência do setor de saúde. São muitos Brasis dentro do Brasil. Estamos no terceiro mundo. Por isso nosso propósito é acessibilidade.

Qual a responsabilidade do governo nessa dificuldade de acesso?
Pelo fato de sermos um país de terceiro mundo, podemos dizer que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem avanços, dentro do que é possível esperar. E tenho orgulho do trabalho da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula tão bem o setor.

Não há politização na Anvisa?
É um órgão totalmente técnico. É só ver como tem sido os processos para aprovação das vacinas da Covid-19.

Como a indústria se posiciona para contribuir com mais acesso à saúde?
A indústria farmacêutica brasileira é muito forte. Todo fabricante pode competir com qualquer grande empresa dos principais países do mundo. Tanto é que 65% do mercado hoje são de empresas nacionais. E a Cimed fabrica mais de 10% dos medicamentos, com 450 milhões de caixas, em um mercado de 4 bilhões. E, em doses, produzimos 7 bilhões de medicamentos. Praticamente uma dose para cada habitante do planeta. Isso mostra a nossa responsabilidade em manter esse trabalho, ainda mais em um ano de pandemia.

O preço dos insumos voltou a patamares mais razoáveis?
A gente perdeu competitividade. Nossa moeda é muita fraca e o preço de logística decolou. Competir com dólar e euro é muito difícil. Aumentou 40% esse custo.

Quanto representa a farmácia independente na receita da Cimed?
Responde por 55%. As grandes redes ficam com 40% e 5% para órgãos públicos. As independentes cresceram porque a população migrou dos grandes centros para os bairros. Se olhar a Avenida Paulista hoje, você vai ver pouca gente. O varejo independente cresceu no nosso negócio no ano passado e compensou a queda nas grandes redes. No Maranhão e Pará, por exemplo, crescemos 150%, impulsionado também pelo auxílio emergencial.

“A indústria farmacêutica brasileira é muito forte. Todo fabricante pode competir no mundo. Tanto é que 65% do mercado é de empresas nacionais” (Crédito:Divulgação)

Como a empresa garante a entrega dos produtos a esses estados?
Temos 26 distribuidoras no Brasil. Hoje a empresa atinge, em média, 60 mil pontos de venda por mês. Temos 1 mil representantes autônomos que fazem 5 mil visitas ao dia. Além disso, adotamos a força de venda aos sábados. Para o autônomo, esse dia extra virou o 13º salário, já que o sábado passou a ser um dia importante de trabalho. No fim do ano, 10% da receita da companhia vem do trabalho aos sábados.

A crise provocada pela pandemia interferiu nos planos de construção da nova fábrica?
Não. Mantivemos o ritmo. Inauguramos a primeira fase no ano passado, de pesagem e armazenamento. O aumento da capacidade produtiva será a partir de setembro, com a entrega de linhas de produção. É a maior fábrica de sólidos da indústria farmacêutica no Brasil. As fases 1 e 2, que estarão concluídas nesse ano, consumiram R$ 200 milhões. As fases 3 e 4 serão de semissólidos e líquidos, em um projeto de mais dois anos e que receberão R$ 300 milhões. Por enquanto, a fábrica atual suporta o crescimento da companhia nessas áreas. Além da fábrica, investimos R$ 90 milhões em 2020, entre marketing e pesquisas e desenvolvimento. Vamos lançar 35 novos produtos em 2021.

Há planos para aumentar a participação em vendas para o poder público?
A gente só não cresceu por não ter capacidade produtiva para isso. Com a conclusão da nova fábrica, a atual passará a atender apenas órgãos públicos e hospitais. Esse processo deve começar já no ano que vem. Com isso, as receitas que virão dessa faixa passarão dos atuais 5% para 25%.