O intervalo que se convencionou classificar como a década perdida na historiografia econômica brasileira não mais pode ser atribuído automaticamente aos anos 1980. A lenta recuperação da atividade, depois da profunda recessão entre 2015 e 2016, legará ao País um período de crescimento mais anêmico do que o registrado no passado. Sob qualquer perspectiva, não restam dúvidas de que ficamos parados no tempo nos dez anos que se encerrarão em 2020, enquanto a maioria dos países caminhava para melhorar a renda e as condições de bem-estar de suas populações. O Brasil ainda está refém de desequilíbrios que vêm afetando o dinamismo da economia nos últimos 40 anos. Se não há como salvar o passado e o presente está cada vez mais comprometido – a previsão de PIB de 2019 segue ladeira abaixo – o alerta agora é para a necessidade de um “choque de realidade” capaz de evitar o risco de uma nova década perdida.

Os dados mais recentes confirmam o apagão brasileiro na década 2011-2020. O crescimento médio deve ficar em 0,9%, com base nas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI). Será o pior período em 120 anos de registros estatísticos de atividade brasileira. Na comparação com os anos 1980, há uma diferença que torna o retrato atual ainda mais desolador. Desta vez, o desempenho brasileiro ficou aquém dos principais pares, bem atrás da média latino-americana. Mais precisamente, 84%, dos 191 países monitorados pelo FMI, terão experimentado um crescimento do PIB per capita superior no período, segundo levantamento do economista Marcel Balassiano, da FGV/Ibre. Na década de 1980, foram 68%. “A década atual está sendo mais perdida do que a chamada década perdida”, diz Balassiano.

Paulo Guedes, ministro da economia: “O buraco negro da Previdência virou um buraco negro que ameaça engolir o Brasil” (Crédito:Mateus Bonomi/AGIF/Folhapress)

Os dados referem-se ao PIB per capita em dólar, ajustado pela paridade de poder de compra (PPC), que costuma ser usado em comparações internacionais. Por essa medida, o Brasil alcançará, em 2020, o patamar de US$ 14.821, menos de um terço do nível americano. No período, seremos ultrapassados por oito países, entre eles Tailândia e Iraque. O PIB per capita dá uma noção mais clara sobre o patamar de riqueza e serve de referência sobre as condições de bem-estar de uma população. Um levantamento do Goldman Sachs mostra como a dificuldade é estrutural nesse quesito. Se confirmadas as projeções, o PIB per capita terá crescido, até 2020, a uma média anual inferior a 0,8% em 40 anos. Nesse ritmo, serão necessários 87 anos para dobrar o patamar atual. “Se o Brasil falhar em afastar o risco de insolvência e na execução de reformas para abrir a economia, elevar o investimento em capital fixo e aumentar a produtividade, a próxima década pode acabar perdida também”, afirma o relatório. “Não seria apenas uma década perdida, seria meio século desperdiçado.”

O ritmo lento da recuperação tem surpreendido os economistas. Pelo padrão histórico, depois de um baque tão profundo, a resposta deveria ser potente também. Em dezembro de 2018, dois anos após o fim oficial da recessão, o PIB per capita ainda estava 9% abaixo do pico da década, no mesmo patamar de dez anos antes. E os dados mais recentes confirma essa tendência. O IBC-Br, do Banco Central, visto como uma prévia do PIB, mostrou, na quarta-feira 15, uma queda de 0,68% no primeiro trimestre e deflagrou uma onda de revisões para 2019, a um nível mais próximo de 1%. Para o Bradesco, o ponto de virada será o último trimestre. “Num cenário em que a reforma da Previdência passe, não vejo a economia com problemas tão grandes que nos impeça de acelerar para algo entre 2% e 3%”, afirma o economista-chefe, Fernando Honorato Barbosa. “Mas devo reconhecer que temos sido sistematicamente frustrados. Hoje, tenho menos confiança nessa projeção do que no passado.” O banco prevê avanço de 1,1% neste ano e 2,2% em 2020.

As causas por trás da lenta recuperação do Brasil ainda não são plenamente conhecidas. Mas já é possível notar que nem a taxa de juros básicos na mínima histórica há mais de um ano tem sido suficiente para estimular uma aceleração. Os economistas têm sido cautelosos em apontar mudanças estruturais profundas. Choques recentes, como a crise dos caminhoneiros, ainda podem estar tendo algum efeito sobre a dinâmica de crescimento. Nesse cenário, todas as esperanças recaem sobre a mudança que poderá afastar o risco de insolvência do Estado: a reforma da Previdência. O pagamento das aposentadorias e pensões responde por quase 60% do orçamento e é uma das principais fontes do desequilíbrio fiscal. Desde 2014, a União está no vermelho, situação que não deve mudar até 2022.

Cadê a verba?: milhares de manifestantes foram às ruas na quarta-feira 15 para protestar contra o contingenciamento nas universidades públicas federais, adotado para fazer frente às dificuldades fiscais (Crédito:Ricardo Bastos/Fotoarena/Agência O Globo)

CONFLITO ORÇAMENTÁRIO O enorme desarranjo das contas públicas é apontado como uma das razões pelo desempenho brasileiro ter sido pior do que a maioria dos pares na década atual. Se nada for feito, a falência do Estado aumentará o conflito orçamentário, com prejuízos sobre os serviços públicos. Na quarta-feira 15, milhares de manifestantes foram às ruas para protestar contra o contingenciamento de recursos nas universidades públicas. Em audiência no Congresso, o ministro Paulo Guedes confirmou um novo congelamento, para fazer frente à previsão de um PIB mais fraco. “Independente de os mercados quererem que as coisas aconteçam rapidamente, a nossa realidade é que estamos no fundo do poço”, afirmou o ministro. “O buraco negro da Previdência virou um buraco negro que ameaça engolir o Brasil.”

A sustentabilidade das contas públicas é requisito básico, mas não suficiente para elevar o potencial de crescimento. A principal culpada pelo dinamismo fraco dos últimos 40 anos é a baixa produtividade, causada por fatores como ambiente de negócios hostil, abertura comercial abaixo da média, insegurança jurídica, elevada carga tributária e baixa qualificação da mão de obra. Os remédios vão desde reformas que simplifiquem o pagamento de impostos até mudanças para facilitar a abertura e fechamento de empresas. “Tivemos um ciclo de commodities muito favorável na década passada, que foi majoritariamente empregado em consumo em vez de investimento e estamos saindo do bônus demográfico sem que tenhamos feito, por exemplo, uma reforma da Previdência”, afirma Barbosa.

Pelo lado do investimento, a resposta tem sido muito aquém das recuperações de crises passadas. Também parece haver menos chance para uma retomada mais forte no consumo, como das outras vezes. A crise fiscal não deixa espaço ainda para o poder público induzir a atividade. A esperança é que um choque de confiança, via reformas, possa reverter esse quadro e destravar principalmente a variável do investimento. Caso contrário, será preciso se aprofundar num diagnóstico mais detalhado. “Um choque profundo como o que vivemos é duradouro. Ainda não dá para ter certeza de que é só estrutural, mas de fato parece mais difícil crescer do que no passado. É um país que está preso na armadilha da renda média”, diz Barbosa. Seria melhor que não esperássemos mais 40 anos para perceber isso.