Sob o comando do economista alemão Martin Raiser, a equipe do Banco Mundial no Brasil finalizou um dos mais profundos diagnósticos sobre o Estado brasileiro. O documento foi encomendado em 2015 pelo então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, para nortear a revisão dos gastos e traçar alternativas capazes de rever o déficit fiscal, sem abrir mão das conquistas sociais. O levantamento concluiu que o governo gasta mais do que pode e aplica mal seus recursos. Como remédio, sugeriu reformas para gerar uma economia de 8,36% do PIB até 2026, com medidas como as mudanças nas regras da Previdência e a redução de subsídios a empresas. Raiser, que assumiu a direção geral da instituição em Brasília há cerca de três anos, destaca no relatório uma tentativa de proteger os mais pobres, mas admite que haverá muitos atingidos. “Se der para colocar essa carga proporcionalmente na faixa rica, tanto melhor.” Confira a entrevista que ele concedeu à DINHEIRO:

DINHEIRO – O estudo faz um diagnóstico amplo sobre o Estado. Há algo que chame a atenção em relação ao mundo?

MARTIN RAISER – O Brasil está verdadeiramente fora da curva na Previdência. É relativamente jovem e gasta por volta de 13%, 14% do PIB, com a previdência, incluindo os servidores públicos. É mais do que gasta a Alemanha, o Japão, que são países muito mais velhos. Isso significa que precisa de um Estado muito maior, uma carga tributária maior, mais parecida com a dos países de renda alta. Outra área que o Brasil está um pouco fora do padrão, mas aí eu estou falando com cautela, porque os dados são incompletos, é a remuneração do servidor público. O prêmio dos salários do servidor público em relação ao
do setor privado é muito mais elevado no Brasil do que nos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

DINHEIRO – O problema envolve o número de servidores também?

RAISER – Não, é o salário.

DINHEIRO – Sobretudo no salário de entrada, certo?

RAISER – Depende, porque tem áreas em que o salário de entrada não é tão alto. Tem a progressão automática, que, a cada três anos, está aumentando tanto o salário do bom servidor como o do ruim. Tem de estudar mais o serviço público sob uma perspectiva de desempenho. Um exemplo é o Ceará na educação. Não gasta muito na área, é um Estado mais pobre, mas tem um desempenho muito bom. Tem coisas que o setor público pode aprender do setor privado porque há mais eficiência. É claro que tem limites, mas é a discussão que a gente tem de enfrentar.

DINHEIRO – O senhor vê disposição para implementar as medidas propostas no estudo? Quais têm mais chances?

RAISER – Há alta probabilidade de alguma reforma da Previdência. Pode ser essa proposta feita pelo governo ou outra. No nosso relatório defendemos ir além desta, para alcançar a revisão do direito adquirido dos servidores pré-2003, porque é simplesmente insustentável. Se não toca nesses direitos, a reforma fica desequilibrada, muito em cima do trabalhador mais jovem, do servidor mais jovem. As outras estão em discussão, mas já foi aprovada a reforma do ensino médio, por exemplo.

DINHEIRO – No conjunto, elas representam uma redução de gastos de 8,36% do PIB. Sendo realista, quanto devemos conseguir até 2026?

RAISER – Todo mundo está de acordo com o fato de que a dívida pública não pode crescer infinitamente. Com o teto dos gastos, vai crescer a 85%, 90% do PIB, para depois começar a cair. Vai ter de discutir a necessidade de ter superávit primário. Pode também fazer algo do lado da receita, sem dúvida, tentar arrecadar mais. Qualquer governo vai ter de enfrentar essa realidade. Nosso diagnóstico não foi feito com alguma noção de só escolher medidas populares. Só olhou a contribuição delas, quem vai pagar mais e se os pobres serão atingidos. As medidas protegem o interesse dos mais humildes e dos mais pobres, mas é claro que, para fazer uma volta de 5% do PIB no superávit primário, muitas pessoas vão ser atingidas, através de tributos mais altos, através de redução ao acesso de privilégios. Se der para colocar essa carga proporcionalmente mais na faixa rica, tanto melhor.

DINHEIRO – Diagnósticos como este não faltam, mas o desafio é implementar as medidas. Como tirá-las do papel?

RAISER – Isso é o papel dos políticos. É claro que precisa de legitimidade política, precisa de um mandato. Mais fácil fazer reformas com um mandato claro a favor das reformas e é mais fácil fazer isso no início do mandato.

“Política de ajuste fiscal deve ser avaliada regularmente”Protesto contra reformas do governo federal virou até tema de blocos de Carnaval no Rio de Janeiro (Crédito:Fernando Frazão/Agência Brasil )

DINHEIRO – O estudo foi apontado de ser uma agenda liberal. Os rótulos ideológicos atrapalham?

RAISER – Não temos esse rótulo de ser liberal ou outra coisa, nos baseamos em evidências. Temos de ter a humildade de sempre avaliar e ver se as medidas que foram sugeridas estão dando o efeito desejado. É o que estamos cobrando da política industrial. É claro que há muitos modelos para desenvolver um país economicamente e nem todos são só de mercado. Há sucessos com atuação do Estado muito ativo, mas nenhum desses modelos funciona se não se avalia o resultado de suas políticas. O Brasil gastou por volta de 5% do PIB em subsídios, numa bolsa empresarial, e o resultado não foi muito bom. Tem de mudar. Isso não é questão ideológica, é questão da evidência, olhar o que está acontecendo. A mesma coisa deveria valer para a política de ajuste fiscal. É claro que tem de ser avaliada regularmente. Se não tiver dando certo, tem de mudar.

DINHEIRO – Há quem fale numa obsessão por ajustes atualmente. É possível ter política pró-crescimento sem gastos?

RAISER – Há um debate entre austeridade e crescimento, daqueles que dizem que não é hora de fazer ajuste fiscal porque está prejudicando a retomada, que se gastasse mais, a recessão acabaria mais rápido. Há outro debate, que é o estrutural sobre qual o papel do governo em catalisar crescimento. Sobre o primeiro, o ajuste que foi feito nas contas públicas do Brasil é muito pequeno, uma estratégia de ajuste explicitamente gradualista, deixando a maioria do ajuste para amanhã. Não há uma situação de que o governo fez um ajuste brutal que está matando o crescimento. É o contrário. Estamos vendo agora, com a confiança já diminuindo, o investimento não reagindo como se esperava. Uma das razões claramente é a incerteza política, ligada ao fato de que o próximo presidente vai ter de tomar decisões políticas muito difíceis. Medidas estruturais de ajuste teriam ajudado a aumentar a confiança. Há muitas evidências de que austeridade excessiva, de verdade, mata o crescimento, mas não estou vendo no Brasil atualmente austeridade excessiva em relação ao desafio que o País enfrenta. O segundo debate, não tenho ideologia quanto a atuação do Estado no desenvolvimento econômico. Mas tem de ser baseado em evidências, em avaliação.

DINHEIRO – Considerando que algum ajuste foi feito e há frustração com o crescimento, há risco de a culpa recair sobre as reformas?

RAISER – Pode ser que se fale que é por causa disso, mas os dados não mostram isso. Mostram a importância da confiança, do investimento e também da dificuldade de um país como o Brasil de mudar o rumo econômico, sair de modelo de crescimento muito baseado em consumo e no preço de matérias-primas. Essas fontes se esgotaram. Foi um crescimento de uma maneira ou outra insustentável. Saindo desse modelo, retomar o rumo anterior será difícil. O País tem de fazer uma mudança estrutural. Não é simplesmente uma recessão cíclica. Não vai sair através de mais despesa pública, vai ter de achar novas fontes de crescimento, novo investimento, mudar do modelo baseado no consumo interno e alavancar a demanda externa. Isso não se faz em alguns meses.

DINHEIRO – O debate que se travava no Brasil é se poderíamos ficar presos na armadilha da renda média.

RAISER – É desafiador, porque quando cresce da renda baixa para a renda média, está transferindo mão de obra do setor agrícola para o industrial e de serviços. Quando vai da renda média para a alta, tem de achar fontes de crescimento internas aos setores, não pode ser mais realocação de mão de obra, tem de ser aumento de produtividade de cada empresa e isso é o mais difícil.

“Próximo presidente vai ter de tomar decisões políticas muito difíceis”Os presidenciáveis Flávio Rocha (PRB), João Amoedo (Novo) e Marina Silva (Rede), em debate na pré-campanha das eleições deste ano (Crédito:Omar de Oliveira)

DINHEIRO – Mas o risco aumentou?

RAISER – O Brasil está preso na armadilha da renda média há 40 anos. Tem de mudar o modelo econômico.

DINHEIRO – O caminho é o aumento da produtividade?

RAISER – O relatório aponta várias medidas, como eliminação de incentivo fiscal, de crédito subsidiado… Tudo isso pode ter um espaço quando há evidência que funciona. Quando não tem, está criando distorções. Os países nórdicos são exemplos. Eles enfrentaram uma crise brutal no início dos anos 1990 e fizeram ajustes. Agora são celebrados por economistas de esquerda e de direita. Conseguiram fazer esse casamento de incentivos de mercado, uma política voltada para a competitividade, e uma política social de bem-estar social muito bem desenvolvida. Não sei se dá para copiar o modelo nórdico no Brasil, mas dá pelo menos alguma orientação de que isso não é um conflito.

DINHEIRO – No tema da produtividade, se tivéssemos de escolher uma medida apenas, qual seria a mais eficaz?

RAISER – Há muita evidência de que a abertura comercial está dando um impulso produtivo alto. O problema da abertura é que tem efeitos distributivos que não são neutros. Vai ter perdedores. Vai ter de complementar com políticas voltadas para proteger aqueles que são afetados negativamente e agilizar a mobilidade dessas pessoas para novas atividades mais competitivas. É uma medida mais ou menos simples, com efeito internacionalmente bem estabelecido e seria uma política que faz sentido.

DINHEIRO – A resistência à abertura é maior no Brasil do que em outros países?

RAISER – Não. O Brasil está um pouco atrasado, mas essas resistências tinham em outros países também. De verdade, até agora há resistências, mas muitas vezes elas têm a ver com os efeitos locais dessa abertura, que não foram bem antecipados e bem mitigados. A vantagem de um país atrasado na abertura comercial é que pode aprender essas lições e evitar os efeitos negativos.