Para a ex-ministra do Meio Ambiente, o atual governo destrói o soft power conquistado pela diplomacia brasileira na agenda ambiental por ter uma visão obsoleta de desenvolvimento econômico.

Izabella Teixeira foi ministra do Meio Ambiente (2010-2016) dos governos Lula e Dilma Rousseff. Para detratores, tudo o que disse nesta entrevista terá esse viés. Por isso mesmo cabe aqui destacar seu currículo. Ela desempenhou papel-chave na negociação do Acordo de Paris, serviu no Painel de Alto Nível de Pessoas Eminentes para a Agenda de Desenvolvimento, é coChair do Painel Internacional de Recursos Naturais da ONU e integra o Conselho Consultivo de Alto Nível do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas. E é com essas credenciais que ela trabalha para manter a pouca reputação que o Brasil ainda tem na agenda sustentável. Faz isso contrariando a posição do governo. “Hoje somos comandados por pessoas que privilegiam a ignorância em detrimento à ciência. Se eles se informassem, não fariam o que estão fazendo”, afirmou.

DINHEIRO — Se o atual governo conseguiu cumprir uma promessa de campanha foi a de desmantelar a política ambiental. Em que contexo essas políticas foram criadas no Brasil?
Izabella Teixeira — A política ambiental brasileira começou a ser construída em 1973, durante o governo Médici [Emílio Garrastazu Médici, presidente da República entre 1969-1974], quando foi criada a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema). Primeiro órgão ambiental federal, ela foi uma resposta à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente de 1972, também conhecida como Conferência de Estocolmo, quando pela primeira vez os líderes globais se reuniram para responder às pressões da sociedade do pós-guerra para a reconstrução de um mundo mais sustentável do ponto de vista social e ambiental.

Foi então em plena ditadura militar que a governança ambiental começou?
Sim, o então secretário executivo Henrique Brandão Cavalcanti foi o principal responsável pela criação da Sema. Era um homem, veja só, da siderurgia e da mineração que prezava pela ciência. Não por acaso, ele próprio se tornaria ministro do Meio Ambiente no governo Itamar Franco (1992-1995). Entre os militares, nós tínhamos o almirante Ibsen [de Gusmão Câmara], considerado um dos maiores ambientalistas do Brasil. Eu diria que foi uma época de homens inteligentes que privilegiavam o conhecimento.

“O governo Bolsonaro pegou a agenda ambiental e jogou fora. Política ambiental não é uma coisa em que um bando de maluco resolveu abraçar árvores. É uma questão estratégica” (Crédito:Miguel SCHINCARIOL/AFP)

É uma crítica direta ao governo atual?
Hoje somos comandados por pessoas que privilegiam a ignorância em detrimento à ciência. Se eles se informassem minimamente, não fariam o que estão fazendo. E, de volta à história, o primeiro designado para comandar a Sema foi o Paulo Nogueira Neto, um catedrático, filho de família produtora de cana-de-açúcar e de perfil conservador. Então, em plena ditadura, o Brasil opta por colocar as políticas ambientais como coluna de seu desenvolvimento fortemente apoiadas na ciência e na articulação com a sociedade civil. Aqui estão os pilares da política ambiental.

Quais são esses pilares?
Cooperação internacional, participação da sociedade e ciência. Com mais um pilar que é a garantia da soberania nacional, uma construção diplomática do Brasil e que foi ratificada na declaração da Rio +20.

Todos eles estão sendo destruídos?
O governo Bolsonaro pegou essa agenda e jogou fora. Política ambiental não é uma coisa em que um bando de maluco resolveu abraçar árvores e destruir o interesse do Brasil. É uma questão estratégica construída com um ativo relevante para o País por homens conservadores.

O que a senhora defende é que meio ambiente não é uma questão de alinhamento político?
Quando tratamos de políticas ambientais, não estamos falando sobre disputas entre conservadores e progressistas. E sim de uma posição de quem é negacionista, ignorante no assunto e que faz disso uma bandeira política para mexer com conceitos e medos antigos como a questão da soberania nacional.

Mas a senhora admite que há países que usam a questão ambiental contra o Brasil como uma espécie de barreira não tarifária?
O Brasil tem interesses nacionais. Os outros países, também. Para isso existem os fóruns de diplomacia, as relações bilaterais e multilaterais. Olha como é medíocre o argumento contra a soberania: em 1988 chega a constituinte que recepciona todos os debates da agenda e faz um capítulo dedicado à questão ambiental. Tudo o que se deriva a partir dali é orientado pelo preceito constitucional. Então é óbvio que as leis ambientais defendem a soberania.

Como estava o cenário externo ali?
Até então, quando os países falavam sobre impacto ambiental ele era limitado ao país. Na virada para os anos 1990, a ciência começa a pontuar os problemas ambientais como globais. O primeiro deles é a camada de ozônio, em seguida a perda da biodiversidade e o aquecimento global. O Brasil passa a ter impacto no mundo.

Como isso repercutiu por aqui?
A diplomacia brasileira toma a decisão de chamar o mundo para vir para o País. Nos tornamos a sede da Rio 92. É criado o programa Nossa Natureza com uma ampla reforma da gestão ambiental pública do Brasil. Nasce o Ibama, a Lei do Agrotóxico, o Programa Emergencial da Amazônia Legal. Os programas são exitosos e o Brasil passa a conduzir o debate ambiental do mundo construindo um relevante soft power no mercado internacional.

Quem ganha com a desconstrução dessa trajetória e a nova narrativa?
Tudo isso foi destruído por uma turma que, para mim, tem interesses pouquíssimos transparentes. É uma narrativa que privilegia os perdedores. As sociedades civil e militar precisam repactuar o entendimento de que o meio ambiente é parte dos novos caminhos do desenvolvimento econômico. A dificuldade que emerge é associada à sociedade civil.

De que forma?
O século 21 começa com uma promessa de um mundo mais democrático, olhando para o bem estar social e ambiental. Estava tudo preparado e aí acontece o 11 de setembro [o ataque às Torres Gêmeas] e quem passa a tomar conta dessa agenda são os ambientalistas. Do lado de retrocesso, um marco negativo foi a entrada da China para a Organização Mundial de Comércio (OMC) em 2001.

Qual a relação?
A China e a Índia são grandes emissores de gases de efeito estufa. Com a expansão da economia da China, fortaleceu-se o hábito de as pessoas quererem construir o futuro com base na economia do século passado, querendo um modelo de desenvolvimento antigo. Os tempos mudaram, mas algumas lideranças econômicas não perceberam isso. Esse recado vai também para uma parte do agronegócio brasileiro.

“Temos um governo que acompanha o argumento de algumas lideranças do agro que defendem desmatar a Amazônia para depois restaurar. É muito mais caro e irracional” (Crédito:Carl De Souza/AFP)

Para qual parte?
O agronegócio tem uma capacidade de resposta relevante como foi a moratória da soja. Identificou o problema, organizou-se, abriu diálogo e o resultado é que 99% da soja não vem da área de desmatamento. Mas o Brasil de forma geral voltou a discutir o meio ambiente com a perspectiva do século passado. O Brasil de hoje é um país que luta para ser líder econômico dos anos 90. Só que o mundo mudou.

Há como reverter a perda do soft power?
O Brasil deve entender como ele quer estar no futuro e não mais ser um país do futuro. A ideia de um país do futuro é intangível. Mas se a pergunta é onde queremos estar no futuro é um plano. Temos de entender onde seremos competitivos.

O agronegócio é uma possibilidade?
O maior uso de água no Brasil é na irrigação. Exportamos água na soja. Agora é possível produzir com mais competitividade? Com mais eficiência? É sim. E o Brasil tem essa tecnologia. O agro não é o vilão, mas é preciso mudar a mentalidade.

Falta visão estratégica?
O que é essencial? Termos insumos biológicos, tecnológicos e uma Embrapa renovada? Eu não quero saber se o Brasil tem 60% de terra preservada hoje. É preciso saber quanto o Brasil terá em 2050. O mundo mudou e estamos olhando no retrovisor.

A questão não é a visão de que o dinheiro está no modelo do passado?
Essa é a importância de termos um governo com visão estratégica de ser um regulador e um incentivador de um plano de crescimento. Só que o atual opera pela polarização e exclusão. Temos um governo que acompanha o argumento de algumas lideranças do agro que defendem desmatar a Amazônia para depois restaurar. É muito mais caro e irracional.

Ainda mais quando a floresta está mais valorizada do que nunca.
O Brasil não é relevante no cenário político por ser hard power. O Brasil é relevante na geopolítica climática. Mas não dá para ocupar esse papel com os crimes ambientais em curso. O Brasil tem que repactuar o seu papel no século 21.