12/10/2017 - 19:00
Terça-feira, 10 de outubro de 2017. O local é o quarto andar do Prédio Vermelho, localizado no ponto mais alto da Cidade de Deus. Nessa gleba de 31 hectares em Osasco, município ao lado de São Paulo, o lendário Amador Aguiar instalou a sede do império financeiro que construiu. É lá que bate, incansável, o coração do Bradesco, o segundo maior banco privado do País. Os prédios baixos, de visual espartano, abrigam computadores com informações de 28 milhões de clientes pessoas físicas, e de 4,5 milhões de empresas. Lá ficam departamentos cruciais, como tecnologia e recursos humanos. E também o Prédio Vermelho. O edifício, que todos os empresários e políticos brasileiros de relevância nacional visitaram nas últimas décadas, abriga a Diretoria, a Presidência e o Conselho de Administração. Nesse palco de capítulos importantes da vida econômica e empresarial, mais um movimento entrou para a História na semana passada.
Às cinco horas da tarde, os oito conselheiros aguardavam para uma reunião na sala do quarto andar, onde dão expediente. Nela, Lázaro de Mello Brandão, que vinha presidindo o órgão desde 1990, surpreendeu os colegas e apresentou uma carta de renúncia. Aos 91 anos de idade, após 27 anos no Conselho e 75 anos no banco, Brandão, um dos banqueiros mais poderosos do Brasil e conselheiro de vários presidentes da República, solicitou a dispensa de suas obrigações. Entregou um texto de uma página, escrito de próprio punho, sob o título “Profissão de Fé”. “Sou o único remanescente da Casa Bancária Almeida & Cia., predecessora do Banco Bradesco S.A.”, começa o documento. “Com o ego à flor da pele, perpasso em minha memória vida de jornada de 75 anos no Bradesco”, diz ele. E continua. “Empenhado em profundidade, ascendi os degraus hierárquicos, culminando com a Presidência Executiva e a Presidência do Conselho, outorgadas pelo mítico Amador Aguiar. Lição que aprendi é que o orgulho do próprio desempenho deve sucumbir à sadia prática da renovação.” Seu ciclo à frente do banco, admite, chegou ao final. Ele também redigiu uma carta formal de renúncia, na qual agradece a clientes, acionistas e funcionários e, claro, à família. “Ele se emocionou. Todos se emocionaram”, relata o conselheiro Carlos Alberto Rodrigues Guilherme, o Coca. Além dele, testemunharam o momento histórico Luiz Carlos Trabuco Cappi, Denise Aguiar Alvarez, João Aguiar Alvarez, Milton Matsumoto, José Alcides Munhoz e Aurélio Conrado Boni. Após o ato, os oito conselheiros subiram para o salão nobre, no quinto andar do Prédio Vermelho. Lá, a renúncia de Brandão foi formalmente comunicada aos 150 executivos do banco com cargo de diretoria. As despedidas começaram ali mesmo e o expediente, naquele dia, foi mais longo que o habitual no Bradesco.
A saída de Brandão era esperada, mas surpreendeu ao ser anunciada um pouco antes do previsto. A expectativa era de que ele permanecesse até março de 2018, quando passaria o cargo para Luiz Carlos Trabuco e este, por sua vez, transferiria o comando das operações do dia-a-dia para um dos sete vice-presidentes atuais. No entanto, a transição foi antecipada. Trabuco deverá acumular os dois cargos até março. Dono de um patrimônio considerável e cerca de 1% das ações do banco, lote cujo valor é estimado em R$ 200 milhões, Brandão poderia gozar, finalmente, da aposentadoria. No entanto, deixar de trabalhar não é uma hipótese para ele, que continuará a chegar ao trabalho antes das sete horas da manhã, como faz, religiosamente, desde 1942. “Vão manter a minha mesa e a sala que uso no banco”, comemorou, com um sorriso nos lábios, ao comunicar a sucessão a jornalistas, na manhã da quarta-feira.
Brandão vai presidir os conselhos da Cidade de Deus Participações e da Fundação Bradesco. Menos visíveis que o banco, são fulcrais para a organização. A Cidade de Deus é uma holding de capital fechado, que possui 48,4% das ações do banco com direito a voto, e pertence aos acionistas controladores, incluindo os conselheiros João e Denise, netos de Amador Aguiar. Já a Fundação, segundo maior acionista do banco, com 17% do capital votante, é a entidade filantrópica mais importante do País, com ativos de R$ 2,9 bilhões e investimentos previstos de R$ 626 milhões para 2017 na área de educação.
É a segunda grande obra social do Bradesco – a primeira é o próprio conglomerado financeiro, que gera desenvolvimento ao País e renda para milhares de funcionários, colaboradores e fornecedores. Aguiar teve o mérito de criar o banco e a Fundação, mas foi Brandão quem assegurou a expansão nacional, e a sobrevivência a inúmeros planos econômicos na época da inflação descontrolada. Ele sempre manteve a chama acesa da inovação (o Bradesco comprou o primeiro supercomputador da IBM na América Latina) e, mais importante, a cultura criada por Aguiar. “Seu Brandão tem uma grande responsabilidade na construção do sistema bancário brasileiro”, afirma Trabuco.
A jornada do executivo poderá ser mais leve (“vou chegar às sete e quinze”, ironizou, ao falar com a DINHEIRO na quarta-feira 11), mas ele vai continuar ocupando a sala que usou nas três últimas décadas, sentando-se à mesma mesa e, principalmente, sendo uma referência para os 110 mil funcionários das Organizações Bradesco, onde sua influência jamais poderá ser superestimada. Prova disso foi o perfil dos diretores reunidos no salão do quinto andar. Quase todos têm o mesmo perfil de Brandão. Donos de longas carreiras no banco, que, para muitos, foi o primeiro e único empregador.
Fiéis a uma cultura que privilegia a hierarquia e a disciplina, que prefere a estabilidade ao arrojo, e que coloca mais ênfase na execução das tarefas do que nas ideias revolucionárias. Isso não impede que o banco invista pesado em inovação. Ele foi o primeiro a usar computadores, ainda em 1962, e também foi pioneiro na universalização dos cartões magnéticos e nas transações bancárias pela internet. Mais recentemente, o banco lançou o Next, uma plataforma bancária 100% digital, e a aceleradora InovaBra, para incentivar startups que desenvolvem soluções que podem ser usadas pelo banco.
Isso não ocorreu por acaso. Para conseguir criar um banco de massa partindo do zero, Aguiar implantou uma disciplina digna de ordem religiosa. Algumas de suas idiossincrasias – como a proibição de os funcionários fumarem e usarem barba, e a obrigação de redigirem, todos os anos, uma confissão de bons propósitos –, foram abandonadas com o tempo. Outras, porém, como a carreira fechada, em que apenas funcionários de carreira ou dos bancos comprados podem ascender aos escalões mais altos, continuam valendo.
A genialidade de Aguiar foi perceber que era um excelente negócio suprir a enorme demanda não-atendida de serviços bancários dos clientes de baixa renda. Essa ideia não caducou. Alguns desses milhões de clientes vão enriquecer, e o Bradesco quer acompanhá-los nessa trajetória, ganhando muito dinheiro ao longo do caminho. “O Brasil ainda é um país de grande mobilidade social e econômica”, diz Trabuco. Não por acaso, o Bradesco atende os clientes de menor renda em suas agências de varejo, inclusive em comunidades carentes, sem esquecer clientes de alta renda com o Bradesco Prime. A compra do HSBC, última grande tacada de Brandão, acelerou a conquista de clientes mais abonados. A questão crucial, agora, é como adaptar o modo Bradesco de fazer as coisas às necessidades do mercado, algo que está no topo da lista de preocupações de Trabuco.
Vai levar alguns meses para o significado e os desdobramentos da troca de comando sejam plenamente compreendidos. Que ninguém espere guinadas radicais. No entanto, Trabuco sabe que a filosofia de Aguiar precisa de alguns ajustes. “Eu gostaria de conservar o que a cultura tem de melhor. Mas, ao mesmo tempo, avançar a Organização”, diz ele. “A missão não é manter e conservar, é conservar e avançar. Minha grande responsabilidade é somar os esforços dos talentos e dos recursos humanos que a Organização conseguiu formar nesse período, e ter uma política afirmativa de respeito à diversidade, de fazer a empresa sustentável, de fazer um banco feito para durar.”
Sustentabilidade, diversidade, perpetuidade. Mais e mais, essas palavras serão ouvidas no coração do império. Essa qualificação não é um exagero. Nos 12 meses findos em junho, segundo a empresa de informações financeiras Economatica, o banco, que encerrou o segundo semestre com R$ 1,189 trilhão em ativos, obteve receitas de intermediação financeira consolidadas de R$ 163,7 bilhões (US$ 49 bilhões). Se essa cifra fosse o Produto Interno Bruto (PIB) de um país, o Bradesco ocuparia a 82a posição no mundo, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) referentes a 2016. Estaria à frente de Tanzânia e Bolívia. O banco possui 28 milhões de clientes. Se essa multidão resolvesse criar sua própria nação, ela seria a 49ª em população, à frente de Angola e Austrália, também segundo o FMI.
Resiliente, esse império já teve sua cota de crises. Ao longo das sete décadas de caminhada, ele atravessou meia dúzia de moedas, oito planos econômicos, surtos de inflação descontrolada, intervenções desastradas do governo na economia, além de várias crises políticas. Superou todos esses traumas, não sem alguma tensão. Brandão recorda que o maior desafio foi o Plano Cruzado, decretado em março de 1986. Para conter a inflação, o governo congelou preços, rompeu cláusulas de contratos, e alterou, na marra, a rentabilidade das aplicações financeiras. Com a inflação elevada do início da década de 1980, os bancos tinham montado estruturas amplas e caras para captar a poupança da população e emprestar o dinheiro ao governo. Eles aplicavam os recursos por um ou dois dias, uma atividade conhecida como floating, que representava o grosso dos lucros. Do dia para a noite, essa receita desapareceu e, em abril, tanto Bradesco quanto Itaú contabilizaram, pela primeira vez na história, um prejuízo mensal. Isso disparou a obsessão de ambos pela eficiência e pelo corte de custos. “O Plano Cruzado foi a pior crise que eu enfrentei, tanto em termos financeiros quanto na maneira de administrar o banco”, diz Brandão. “O diretor responsável pelo processamento de dados chegou a ficar uma semana sem ir para casa, para manter o banco funcionando enquanto os sistemas eram ajustados.”
Hoje, o ambiente institucional é muito mais estável. Porém, a instabilidade e a incerteza vêm de outras frentes. Os clientes jovens são afeitos à tecnologia e pouco fiéis às marcas. Isso é mais perceptível no setor de serviços, e mais ainda no caso dos produtos financeiros. Os movimentos mais recentes de seu arquirrival, o Itaú Unibanco, passam pela diversificação, tanto geográfica (investimentos na América Latina), quanto setorial, com a compra da Alpargatas, feita pela Itaúsa, holding das famílias Setubal e Villela, e a Cambuhy, da família Moreira Salles, em uma aposta pesada no varejo. O Itaú também comprou uma fatia minoritária da XP Investimentos, em um negócio de R$ 6,3 bilhões, que o aproximou de uma das mais cobiçadas fintechs brasileiras. Já o banco de Osasco permanece fiel à aposta no Brasil e na permanência no setor. Segundo Trabuco, uma das tarefas do banco é realizar a alfabetização digital de metade dos 28 milhões de clientes, que ainda não usam meios digitais em suas interações com o banco. A questão é não apenas educá-los, mas adaptar-se a sua característica de serem muito menos fiéis às marcas do que seus pais e avós.
Caberá a Trabuco ser o gestor dessa mudança. Ele não deverá permanecer tanto quanto Brandão na presidência do Conselho. Uma das alterações previstas em sua agenda é o estabelecimento de uma idade-limite para a permanência dos conselheiros. “Eu não eliminaria a possibilidade de, no futuro, isso acontecer”, diz ele. Com 66 anos recém-completados, sua passagem pode ter quase uma década, se valer a ideia de estabelecer um teto de 75 anos de idade. Tempo suficiente, porém, para ele capitanear as mudanças.
Formado em Filosofia pela USP e e pós-graduado em Sócio-Psicologia, Trabuco é um homem culto, afeito aos clássicos. Assim, cabe citar “O Leopardo”, obra prima do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896 – 1957). No livro, Lampedusa descreve a atuação política de um nobre siciliano durante a unificação italiana, no fim do Século XIX. Ao nobre, apelidado de Leopardo, coube a tarefa de negociar as mudanças. E é dele uma das frases mais citadas da literatura: “É preciso que as coisas mudem para permanecerem as mesmas.” Nada mais adequado para descrever o desafio que se afigura para o Bradesco. Ao longo dos últimos anos, o slogan do banco, no embalo dos Jogos Olímpicos, foi “Agora é BRA”, mesclando o Bra de Brasil, o de Bradesco e, por que não, o de Brandão. Agora, nessa nova fase, o banco está sob a responsabilidade de Luiz Carlos Trabuco. Agora, é TRA.