Em seu livro 1984, o escritor inglês George Orwell idealizou uma sociedade vítima de um governo totalitário, liderado pelo Big Brother, ou Grande Irmão, que submetia todos os cidadãos a uma vigilância constante. Guardadas as devidas proporções, o Banco Central (BC) está se aproveitando da tecnologia para aperfeiçoar o controle sobre as transações financeiras. Os técnicos do BC vêm trabalhando em um sistema de informações baseado em blockchain, que combina banco de dados com criptografia, e que sustenta a operação de moedas virtuais como Bitcoin.

A iniciativa visa a melhorar a eficiência na transmissão dos dados e ampliar o controle das informações que circulam entre os bancos e os órgãos reguladores do sistema financeiro. “Estamos em fase de testes e devemos apresentar, ainda neste semestre, a primeira solução de um processo operacional apoiado em blockchain”, diz Aristides Cavalcante Neto, chefe-adjunto do departamento de tecnologia do BC. A intenção é tornar as transações mais rápidas e seguras e também protegê-las contra fraudes.

Um dos principais diferenciais da nova rede a ser implantada é a descentralização das informações. Hoje, toda a movimentação financeira do País é processada em dois servidores do BC, ambos em Brasília. Se um deles sofrer uma pane, o outro assume. Isso expõe o sistema a riscos. “Em uma previsão catastrófica, se os dois entrarem em pane, o sistema de pagamentos brasileiro terá sérios problemas”, diz Gustavo Paro, executivo-sênior da Microsoft. A empresa fundada por Bill Gates fornece infraestrutura em nuvem para os testes do BC com blockchain.

A criação do Big Brother do BC começou há cerca de dois anos, a partir de um estudo de contingência denominado Salt. A ideia inicial foi criar uma rede alternativa descentralizada, que garantisse a integridade das informações se os servidores tradicionais pifassem. Cavalcante Neto explica que, hoje, algumas das entidades do sistema financeiro, como a Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP), oferecem alguma segurança. No entanto, a proteção não é completa. “Uma parte das transações financeiras, especialmente as confidenciais e mais sensíveis para os bancos, só podem ser processadas pelo BC”, diz ele. A autoridade monetária ainda estuda como garantir a privacidade desses dados. Enquanto isso, porém, a implantação do sistema de comunicação com outras esferas do poder público permanece a todo vapor. “Quando isso estiver funcionando, no segundo semestre”, diz Cavalcante Neto, “os órgãos governamentais de controle terão acesso imediato a todas as informações.”

O impacto será imenso. A princípio, só as maiores transações, realizadas entre os bancos e o BC, serão observadas. No entanto, quando o sistema estiver plenamente operacional, as milhões de operações que ocorrem diariamente poderão ser acompanhadas. Esse interesse das autoridades é um fenômeno mundial. Bancos Centrais de 90 países já estudam aplicações dessa tecnologia para construir seus próprios Big Brothers, para se defenderem da lavagem de dinheiro e evitarem malfeitorias, como as descobertas pelo escândalo dos Panama Papers, revelado em 2016. O pioneiro, não surpreendentemente, fica na terra de Orwell: o Banco da Inglaterra é um dos mais avançados no processo. No fim de 2017, ele apresentou um projeto de liquidação financeira das transações baseada no blockchain.

A ideia de um Big Brother é assustadora, mas, quem conhece o assunto, garante que há benefícios palpáveis para a sociedade. Um deles é que a nova tecnologia permite não só evitar fraudes, como também cortar custos e ampliar o acesso aos serviços bancários. Guilherme Horn, diretor da Accenture, consultoria que orienta os BCs do Brasil, do Reino Unido e de Cingapura nas iniciativas com blockchain, calcula que o avanço da digitalização pode facilitar a vida dos cerca de três bilhões de pessoas no mundo sem acesso a bancos, 60 milhões deles só no Brasil. Mais ágil e barata, a nova tecnologia permitirá, por exemplo, ampliar a oferta de serviços financeiros oferecidos via celulares. “O blockchain gera eficiência operacional”, diz Horn.

Outra vantagem é a possibilidade de digitalizar o dinheiro físico. Imprimir, transportar e guardar cédulas no Brasil custa cerca de R$ 6 bilhões por ano, despesa suportada, em grande parte, pelos clientes do sistema financeiro. “O blockchain abre a possibilidade para que todo o dinheiro do mundo seja digital”, diz Keiji Sakai, consultor que liderou, em 2017, o grupo de estudos de blockchain da Febraban, entidade que representa os bancos. As pesquisas não são exclusividade dos reguladores: 80% das instituições financeiras privadas estudam as potencialidades do sistema. Por aqui, Itaú, Bradesco e B3 passaram a fazer parte, em agosto de 2016, do consórcio R3. Sediado em Nova York, o R3 recebeu US$ 100 milhões de uma centena de bancos em todo o mundo, dinheiro dedicado a financiar pesquisas.

O Bradesco aportou US$ 3 milhões, e estima que a tecnologia pode reduzir para um terço o custo com o registro de informações. No programa de testes, denominado “Alphaville”, os técnicos calculam o custo da infraestrutura para implantar o sistema de registro de dados. Não é uma tarefa trivial. “Precisamos de centenas de computadores, trabalhando ao mesmo tempo, para suportar a carga”, diz George Marcel, especialista em blockchain do Bradesco. “Outro desafio é aumentar a quantidade de dados que podem ser gravados no bloco por segundo”, diz. No entanto, o trabalho compensa. O Santander da Espanha calculou que, até 2020, a tecnologia pode poupar até US$ 20 bilhões por ano para os bancos.