Um liquidificador pop pautando a tecnologia. Isso é o SXSW. Nascido há 22 anos, em Austin, no Texas, como festival musical com alguma programação de debates, o South by Southwest/SXSW foi se transformando até se tornar uma gigantesca agenda das indústrias de filmes, música, mídia e tecnologia sob o mantra da interatividade. Não só. Sua programação é palco do momento mais ativista do universo digital e da inovação — e onde política é agenda obrigatória. Em 2018 brilhou o senador e ex-candidato a presidente Bernie Sanders. Neste ano, foi a vez de Alexandria Ocasio-Cortez, 29 anos, a mais jovem deputada dos EUA. A moça, aliás, comprou briga grande e disse que a democracia americana “tem um problema no Facebook”. Um dia depois, Larry Sanger (cofundador da Wikipédia com Jimmy Wales), praticamente conclamou um boicote global às redes sociais.

E assim a agenda do SXSW segue olhando para as fronteiras. “O evento mudou de muitas e significativas maneiras desde 1987, mas em sua essência continua sendo uma ferramenta para a criatividade”, diz seu diretor-administrativo, Roland Swenson. Não foi à toa — e nem poderia ser diferente — que o projeto Meet Q fez seu debut oficial este ano. Desenvolvido numa parceria entre a Copenhagen Pride (que organiza eventos LGBTQIA) e a agência Virtue, com auxílio de empresas de tecnologia, Q é um assistente de voz sem gênero (masculino ou feminino) para combater os estereótipos e tornar o mundo da Inteligência Artificial mais inclusivo. Há um desequilíbrio quando assistentes virtuais dos TechGiants (Amazon, Apple, Google, Microsoft) se chamam, respectivamente, Alexa, Siri, Cartona e Google Assistant e todos são vozes femininas. “Chamar de Alexa uma assistente que ajuda nas tarefas domésticas reforça o estereótipo de que mulheres são o apoio natural para as pessoas nesses
trabalhos”, disse Julie Carpenter, uma das participantes do projeto.

Hoje, a representação de gênero não cabe mais no cenário binário, mulher-homem. E mesmo um segmento altamente focado no novo, na vanguarda e na inovação, como o da tecnologia, acaba trabalhando exatamente sobre essa premissa. Para chegar ao Projeto Q, um grupo de linguistas, tecnólogos e designers de som construiu a nova voz digital, sem gênero, feita a partir de vozes reais. A voz Q não vai aparecer no seu smartphone amanhã. Mas a ideia é pressionar a indústria de tecnologia, em especial seus grandes players, para que pensem na questão. Designers de som correm o risco de reforçar os estereótipos de gênero ao escolher o padrão mulher para assistentes de IA que realizam tarefas prestativas e atenciosas.

Estudos sobre interface de voz surgiram de forma mais consistente apenas na primeira metade dos anos 2000. Num dos mais relevantes, o professor de Harvard Clifford Nass documentou pesquisas revelando efeitos psicológicos na maneira como interagimos a assistentes sonoros. Vozes sintéticas femininas são percebidas como pessoas dispostas a nos ajudar e alguém mais capaz de tratar de temas afetivos do que assuntos técnicos. Na outra parte, o modo sonoro masculino traz uma carga percebida como autoridade. Outro professor americano, Karl MacDorman, da Universidade Indiana, chegou a resultados ainda mais agudos: tanto mulheres quanto homens preferiram vozes sintetizadas femininas, descritas por ambos como “mais quentes”.

O Projeto Q nem se trataria da primeira tentativa de criar uma voz neutra em termos de gênero. Seu primeiro interesse é político: usar a tecnologia para estimular o debate sobre questões sociais e de gênero. Para chegar à voz Q a equipe registrou vozes de duas dúzias de pessoas que se identificam como femininas, masculinas, transgênero ou não-binárias. Cada pessoa leu uma lista determinada de frases. Os resultados foram enviados a 4.500 pessoas na Europa e a partir dessa grande enquete se decidiu por uma voz “neutra”.

A discussão só tende a aumentar. O mercado de assistentes de voz deverá crescer 35% ao ano até pelo menos 2023. “Vai se tornar uma maneira cada vez mais comum de nos comunicarmos com a tecnologia”, diz Julie Carpenter, do Project Q. Reportagem da publicação Wired, dedicada a temas da cultura digital, diz que as empresas de tecnologia não estão necessariamente no negócio de excluir deliberadamente vozes que não se alinham nitidamente com o binário feminino-masculino. Talvez eles pensem que qualquer coisa fora da norma seria muito perturbador para um produto que é de natureza utilitária (faça perguntas, obtenha respostas). “O que podemos fazer é forçar a norma”, diz Anna Jørgensen, linguista que atuou no Projeto Q.

O perigo da IA e da robótica é que designers humanos infundem ali seus próprios conceitos. E preconceitos. Uma experiência altamente impactante — e emblemática — em relação aos humanos contaminando a atuação da Inteligência Artificial se deu há três anos. A designer sueca Johanna Burai fez uma busca no Google Imagens digitando a palavra hands (mãos). Todas as 800 opções que surgiram eram de mãos brancas, o que não é exatamente uma representação da humanidade. Ela tentou a mesma busca com as palavras em inglês para nariz, pernas, homem e mulher. O padrão de respostas foi o mesmo. Branco. “As imagens são uma reflexão direta sobre a percepção das pessoas”, disse Burai, à época, a uma reportagem da Dazed. Na verdade, o preconceito não está na IA do Google buscando imagens com uma escolha algoriticamente preconceituosa. É o oposto. O preconceito humano, que escolhe, salva, curte e compartilha fotos de mãos brancas “ensinou” à máquina que o padrão mais buscado e aceito era esse. Deixamos a Inteligência Artificial menos inteligente. E mais preconceituosa. Dessa necessária pajelança entre ativismo e tecnologia é feito o SXSW.