Ao assumir a Secretaria da Fazenda de Goiás a convite do governador Ronaldo Caido (DEM), a economista Cristiane Schmidt encontrou um caixa quase zerado. Refez as contas e chegou a um total de R$ 3 bilhões em pendências, entre as quais os salários de dezembro de cerca de 170 mil servidores. O orçamento de 2019 foi ajustado para incorporar o desfalque herdado e agora prevê um déficit de R$ 6 bilhões neste ano. Não restou outra alternativa ao estado senão decretar calamidade financeira e buscar soluções urgentes para reverter o caos. Enquanto negociava os termos de um socorro com a União, a administração estadual foi surpreendida por uma decisão da Justiça estadual obrigando a regularizar os pagamentos. “A decisão foi suspensa, mas se tivesse ocorrido teria pago os salários de dezembro, mas não teria pago os do mês”, afirma Schimdt. “Não é com uma canetada que se muda os fatos. A receita é uma só.”

A secretária goiana quer evitar novas surpresas. Junto com Caiado, ela lidera um movimento para sensibilizar membros do Judiciário, do Legislativo e dos tribunais de contas sobre a situação falimentar dos estados. Em fevereiro, os dois visitaram o Supremo Tribunal Federal (STF) e entregaram uma carta com apoio de outros sete secretários de Fazenda. Nela, cobravam um compromisso da corte com a sustentabilidade fiscal na hora de apreciar processos sobre o tema. Decisões tomadas no passado contribuíram para ampliar o problema ou dificultar soluções. Agora, a intenção é uma participação mais ativa e consciente por parte da Justiça. “A carta dos secretários foi feita para alertar o STF que a situação estrutural é muito grave e que não adianta tapar o sol com a peneira”, afirma Schimdt. “Não é só o STF, tem o Congresso, as assembleias legislativas. Se todos não derem as mãos e acharem que é só uma crise, o Brasil vai afundar.”

“Se todos não derem as mãos e acharem que é só uma crise, o Brasil vai afundar”
Cristiane Schimdt, Secretária da Fazenda de Goiás

De imediato, a corte pode dar uma contribuição. Um julgamento iniciado no fim de fevereiro pode rever uma liminar que impede, há mais de dez anos, o uso de itens mais duros para cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. O mais polêmico é o que autoriza a redução de jornada, com diminuição dos salários de servidores, às administrações públicas que estiverem estouradas no limite de gastos com pessoal. Dados do Tesouro Nacional mostram que há ao menos cinco casos: Minas Gerais, Mato Grosso, Tocantins, Roraima e Paraíba. Goiás não está na lista. Regras frouxas no passado flexibilizaram a contabilidade do gasto com pessoal e não incluem, por exemplo, o pagamento do Imposto de Renda sobre a folha de salários. O gasto sai do caixa, mas não aparece na contabilidade como despesa com pessoal. Nos cálculos da secretaria, se considerado os descontos inadequados, somente o Executivo goiano estaria gastando 64% da Receita Corrente Líquida em pessoal e não 44% como aparece nos dados do Tesouro. O limite previsto pela LRF é de 49%.

Outro processo que estava junto na pauta do STF trata do item que autoriza o Executivo a limitar o empenho de despesas nos demais poderes quando há frustração de receita. Hoje, quando a arrecadação fica abaixo do previsto no orçamento – caso frequente nas administrações pelo Brasil – o ajuste costuma se dar somente ao Executivo. O Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público continuam a seguir os parâmetros originais da peça orçamentária. O julgamento sofre pressão dos sindicatos dos servidores e de associações de classe, como as de magistrados. “Olho para essas ações menos em relação ao impacto fiscal e mais como um resgate de ferramentas para que não continue deteriorando”, diz Ana Carla Abrão Costa, sócia da Oliver Wyman e ex-secretária da Fazenda de Goiás. “São medidas de difícil implementação e que estão longe de resolver o problema, mas dão um alento.”

Em busca de socorro: o ministro Paulo Guedes (à esq.) em reunião com governadores no dia do anúncio da reforma da Previdência. Na página oposta, o presidente do STF, Dias Toffoli. A corte julgará temas de responsabilidade fiscal (Crédito:REUTERS/Adriano Machado)

Não é possível prever quantos estados adotariam uma medida como a redução da jornada. Uma carta de repúdio publicada por centrais sindicais no dia do julgamento falava em 16 administrações estaduais interessadas. Em Goiás, não há estudos prontos sobre o tema. Eles serão feitos somente se passar a decisão do STF. “O maior número de efetivos está em professores e policiais”, afirma Schmidt. “Temos de fazer a conta. Ela não é linear. Isso se a gente quiser usar, se for viável” As medidas também podem atender demandas no governo federal e nos municípios.

Muitas prefeituras com frustração de receita tiveram dificuldades em fazer ajustes na crise. “A LRF se aplica a todos os governos. É um equívoco a leitura de que só estados seriam beneficiados”, diz José Roberto Afonso, especialista em finanças públicas e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). “Confio que o STF compreenda o espírito da LRF e reestabeleça suas regras originais.” Sobre a resistência dos servidores, Afonso ressalta: “Melhor trabalhar menos e receber menos do que nada receber, se demitido, como já prevê a Constituição.”

Resistência: servidores estaduais do Rio de Janeiro protestam contra medidas de ajuste. categorias são contra medidas em votação no STF (Crédito:Marcelo Carnaval/ Ag. O Globo)

ATIVISMO JUDICIÁRIO A pressão do Executivo por um papel mais consciente das cortes sobre as finanças públicas não se restringe aos salários. Na negociação direta, a batalha é quase sempre perdida com os outros poderes. Basta lembrar que após a maior recessão da história, os ministros do STF conseguiram aprovar, em 2018, um reajuste de salários de 16% (para R$ 39,3 mil). Isso apesar do efeito cascata de mais de R$ 4 bilhões nas contas estaduais e do contingente de quase 13 milhões de desempregados. A luta do Executivo agora é por uma visão mais racional pela via indireta, nas decisões judiciais. No texto da reforma da Previdência, por exemplo, a equipe econômica inclui um dispositivo para tentar limitar o aumento de despesas por processos. “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido por ato administrativo, lei ou decisão judicial, sem a correspondente fonte de custeio total”, afirma o trecho da reforma.

Em fevereiro, o STF confirmou uma decisão da Superior Tribunal de Justiça (STJ) que estende a todos os benefícios do INSS o pagamento adicional de 25% para quem precisa de assistência permanente. Até então, o bônus estava restrito a aposentados por invalidez que necessitavam de um cuidador. Com o julgamento, até quem ganha o teto de R$ 5.645,80 terá direito ao extra. O governo tentou argumentar que haveria um gasto adicional de R$ 5 bilhões às contas públicas, mas foi vencido. O déficit da Previdência em 2019 deve chegar a R$ 218 bilhões. Não se trata de um caso isolado. Pelas regras da Previdência, a aposentadoria especial para idosos miseráveis (BPC), seria paga originalmente a famílias com renda per capita equivalente a um quarto do salário mínimo (cerca de R$ 250). Em decisões judiciais, o conceito foi ampliado e abrange hoje quem tem até o dobro da renda.

Cerca de 25% dos mais de 2 milhões desses benefícios têm origem na Justiça, a um custo de mais de R$ 5 bilhões. Em 2017, o STF também barrou o aumento da contribuição previdenciária dos servidores federais de 11% para 14%, uma tentativa de reduzir crescimento da despesa previdenciária na União. A reforma de Bolsonaro reintroduziu o aumento de forma escalonada, de acordo com a renda, até o limite de 22%. E mais uma vez o tema deve parar no STF. O ministro da Economia, Paulo Guedes, se antecipou à batalha judicial. Em fevereiro, se reuniu com o presidente da corte, Dias Toffoli, para tentar blindar o texto da reforma. Para saber se deu certo, só depois que o projeto passar pelo Congresso, tarefa que já soa complicada demais na conjuntura atual.