As áreas de preservação permanente localizadas às margens de rios, lagos e represas de centros urbanos, já atacadas por ocupações irregulares, correm o risco de passarem por uma profunda revisão legal, com a sua abertura para novos desmatamentos, fragilizando ainda mais a proteção dessas regiões.

Sem alarde, um pacote de projetos de lei que tramita no Congresso e que pode ir à votação pelo plenário da Câmara e Senado em regime de urgência – ou seja, sem debate ou discussões pelas comissões parlamentares – promove mudanças drásticas no chamado “Código Florestal” (Lei n.º 12.651/2012). Pelas regras atuais, essas áreas hídricas de proteção permanente, as APPs, preveem hoje a proteção de uma faixa mínima de 30 metros no entorno dos cursos d’água. Trata-se de uma regra federal. As mudanças propostas, no entanto, repassariam a municípios a atribuição de definir essa faixa de proteção, podendo até mesmos eliminá-las, caso seja de interesse da administração local.

Em muitas cidades do País, rios, lagos e represas estão com suas margens tomadas por ocupações irregulares. Para isso, no entanto, já existe legislação que prevê regularizações desses espaços. As alterações propostas, portanto, teriam efeito sobre regiões cobiçadas pela indústria imobiliária.

“Em pleno 2021, e com a crise climática já instalada, Câmara e Senado parecem ignorar os problemas que ocorrem pela falta da vegetação ao longo dos rios, como as enchentes cada vez mais frequentes e intensas, causando destruição e perda de vidas humanas”, diz Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima. “Pretendem votar às pressas regras mais flexíveis sobre as áreas de preservação permanente urbanas. É uma irresponsabilidade completa. Cidades inteligentes respeitam as regras ambientais. Para isso os legisladores necessitam lutar pela implementação das regras protetivas, e não para flexibilizá-las.”

Ao todo, há nove projetos de lei na Câmara que podem ser reunidos (apensados) e, numa só tacada, promover as mudanças no Código Florestal. Nesta quarta-feira, 18, o plano de votar esses projetos em regime de urgência deve ser submetido ao Plenário da Câmara. No Senado, há ainda mais um projeto de lei que está na pauta do plenário desta quarta-feira.

Na avaliação de ambientalistas, as propostas potencializam novas ocupações e construções em áreas urbanas mais sensíveis e de alto risco de desastres, como encostas, topos de morro, regiões montanhosas e margens de corpos d’água, além de promoverem alterações no regime jurídico de áreas úmidas em geral, como veredas. “Trata-se, portanto, de um cheque em branco, sem qualquer contrapartida ambiental, para que cada um dos 5.570 municípios possa, de forma desordenada e em detrimento do equilíbrio ecológico, reduzir suas APPs e abrir novas áreas para desmatamento”, afirma o Instituto Socioambiental (ISA), em nota técnica sobre o tema.

“A gravidade e a extensão desse pacote são espantosas. Abriria um portal para a realização de novos desmatamentos em todos os biomas brasileiros, dentro de áreas protegidas essenciais à proteção dos recursos hídricos e à segurança da população”, diz Kenzo Jucá, assessor técnico do ISA.

A lei do Código Florestal (12.651/2012) estabelece que Área de Preservação Permanente é uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, que tem a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, protegendo o solo.

Suely Araújo lembra que as cidades, muitas vezes, nascem e crescem a partir de rios que, além de funcionar como canal de comunicação, dão suporte a serviços como o abastecimento de água potável e a eliminação de efluentes sanitários e industriais. “Na margem desses rios, historicamente têm sido ignoradas nas cidades brasileiras as faixas com matas ciliares, que protegem os rios de assoreamento e as comunidades de enchentes”, afirma.

Na avaliação de Kenzo Jucá, caso o pacote de projetos de lei seja aprovado, estaria inviabilizado o cumprimento das metas climáticas do Acordo de Paris assumidas pelo Brasil. “Isso também afastaria o País do ingresso na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O objetivo desse conjunto de regras é renovar a antiga intenção de fundo de alguns setores radicais do agronegócio, de nunca implementar o Código Florestal de fato.”

A aprovação dos projetos de lei está nas prioridades da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). Nesta semana, membros da bancada, que é uma das maiores do Congresso, tiveram um encontro com o presidente da Câmara, Arthur Lira, para tratar do assunto. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, também participou da reunião, que ocorreu na casa de Lira.

Ao todo, nove projetos de lei foram detalhados pelos parlamentares a Lira, que tem acelerado a tramitação dos textos no plenário, sem que haja realização de debates nas comissões, como pedem as organizações ambientais. A bancada ruralista nega que haja fragilização das leis e argumenta que o pacote de propostas teria o objetivo de “atualizar” a lei florestal.