A diferenciação está no coração do mercado de luxo. E suas peculiaridades podem variar de serviços de alto padrão a produtos extravagantes. Por crer que o segredo desse sucesso residia nas lojas físicas, o segmento sempre resistiu em migrar para o digital. Até a pandemia. Replicar a experiência em outro ambiente demandou esforços de grifes como Chanel e grandes redes de departamento como Browns Brook Street, Harrods e Neiman Marcus, que recorreram à parceria com a Farfetch, nascida e consolidada no universo on-line.

A estrutura que o marketplace desenvolveu ao longo de seus 15 anos está por trás hoje de grandes sites de luxo, com soluções inovadoras como os provadores virtuais, que permitem aos clientes ‘experimentar’ uma versão digitalizada dos produtos. A plataforma teceu uma rede dinâmica que permite a integração desses dois mundos com cada vez menos atritos. Responsável pela jornada omnicanal no mundo do luxo, quer garantir que seus parceiros sigam focados no principal: gerar desejo.

Há nove meses na companhia, Renato Guerra, vice-presidente para a América Latina, viu assentar o hábito digital dos consumidores brasileiros no mercado de luxo. Muitos já puderam voltar a comprar fora do País, mas boa parte se manteve fiel às plataformas depois da primeira experiência com e-commerce durante a pandemia. O fenômeno, ele avalia, expande de forma definitiva o horizonte nesse segmento.

“Precisamos do ponto a mais, que é importante para o consumidor e, portanto, a base do nosso negócio” Renato guerra VP da Farfetch na América Latina.

A exemplo: encontrar uma Himalaya Birkin, ícone da grife francesa Hermès, é raríssimo. Tanto que a peça costuma ser arrematada acima de 340 mil euros nas poucas vezes que é vista à venda — geralmente em leilões da Christie’s. Uma tarefa difícil e custosa, que a área de fashion concierge da Farfetch toma para si. A equipe aciona a rede de fornecedores e compradores em mais de 190 países para levar essa e outras raridades até a porta de seus clientes VIP. “Precisamos desse ponto a mais, que é importante para esse consumidor e, portanto, a base do nosso negócio”, disse Guerra.

Enquanto o mercado de volume investe em automação, a Farfetch segue o caminho contrário: quer humanizar a relação das suas plataformas. Por trás de cada atendimento das centrais, uma base integrada de dados fornece um rico histórico sobre estilo e preferências de cada consumidor. Para o programa de fidelidade, o vendedor responsável pela conta acompanha a jornada de compra em tempo real, para atender qualquer demanda de forma imediata. Menos chamadas e mais valor agregado possibilitam essa abordagem, já que qualquer erro pode ser fatal nesse segmento.

PONTA JOVEM Há 15 anos, quando a Farfetch nasceu com um portfólio de 40 marcas de luxo, poucos apostariam que a empresa chegaria tão longe. A marca foi lançada sete anos depois de pioneiras do varejo de luxo digital — como Asos (2000), Net-A-Porter (2000) e Vente-Privée (2001), que virou VeePee —, mas ainda assim encontrou espaço para crescer no vácuo que não era preenchido pelas grifes ícones do luxo. Hoje, a plataforma do empresário português José Neves tem um portfólio de mais de 1,1 mil marcas.

Operações distintas conectam esse mercado de uma ponta a outra: o marketplace, seu negócio mais relevante, a plataforma de soluções digitais para o varejo, até chegar ao New Guards Group (NGG), divisão italiana que funciona como incubadora de marcas, especialmente focada no streetwear. O NGG foi responsável por acelerar grifes de sucesso, particularmente entre consumidores mais jovens, como Ambush, da estilista Yoon Ahn, e Off-White, criada por Virgil Abloh, um dos expoentes criativos da moda no século 21, que depois assumiu a direção artística da francesa Louis Vuitton — onde ficou até sua morte, aos 41 anos, no fim de novembro passado, em decorrência de um câncer.

A onipresença permite à Farfetch manter uma conexão mais profunda com o mercado. “Temos uma visão nítida sobre onde precisamos estar e como vamos nos comunicar”, afirmou Guerra, ao lembrar que a operação brasileira é uma das únicas com um perfil próprio no Instagram, rede queridinha por aqui e na qual a companhia responde pelo @farfetchbrasil, que reúne mais de 770 mil seguidores. A aposta faz parte da adaptação às demandas da geração Z (nascidos entre 1995-2010), que pressionam empresas por mais transparência e responsabilidade social e ambiental.

Junto aos millennials (1981-1994), esses jovens levaram o streetwear para as passarelas, borrando os limites da alta costura, que tem o tênis como seu produto mais desejado hoje. “O segmento precisou se descomplicar para esse cliente.” Um dos caminhos que a Farfetch trilhou para se aproximar desse consumidor foi a criação da There Was One (TWO), marca própria básica e eco friendly, lançada no ano passado, cujas peças partem de R$ 887. Com uma moda effortless, trabalha um básico com pegada urbana. Já no seu segundo lançamento, a grife apresentou uma coleção masculina, com calças retas, T-shirts e suéteres, reflexo do crescimento desse público na plataforma.

Há 12 anos no setor, Guerra avalia que a oferta de moda masculina no Brasil é pouco variada, mas enxerga que a TWO tem potencial para preencher o vazio no segmento. “É importante ver o homem saindo do estereótipo de moda que se estabeleceu aqui, que segue uma proposta mais padronizada”, afirmou. Extasiado com a revolução que testemunha — e da qual faz parte — nesse mercado, Guerra explica vir de uma geração que rompeu padrões no mercado executivo por ter se assumido gay e tatuar o corpo, algo impensável há 20 anos, no início de sua carreira. “Travei muitas batalhas para ganhar meu espaço.” Agora, consegue comemorar o início de uma nova era no mercado fashion, na qual ele espera que impere a livre expressão.