Com a aprovação da medida provisória 1.108/2022 pelo Senado na semana passada, agora basta apenas a sanção presidencial para que passem a valer as novas regras para o teletrabalho (também chamado de trabalho remoto ou home office).

Apesar de a medida provisória cobrir alguns pontos importantes e representar avanços, como no artigo em que prevê que as vagas para trabalho remoto devem ser preenchidas preferencialmente por pessoas com deficiência ou que tenham filhos pequenos, especialistas em Direito do Trabalho apontam imprecisões, falhas e uma falta de mudanças significativas, além de um perigo de retrocesso em alguns pontos.

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De acordo com José Carlos Callegari, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela USP, a medida provisória não traz mudanças muito significativas. “A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [principal norma que rege as relações trabalhistas] já possuía regras para o teletrabalho desde antes da pandemia. Ademais, o artigo 6º da CLT, existente desde 2011, já regulava a matéria, ainda que de forma incipiente”, afirma Callegari.

De fato, o artigo 6º da CLT dispõe que “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego”. O artigo também prevê que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

“Ou seja, a própria CLT estabelece que ‘meios telemáticos’ podem servir ao comando do trabalho, gerando inclusive controle de jornada e pagamento de horas-extras. Além disso, esse artigo já dizia que o trabalho remoto e o presencial não se ‘distinguem’, logo qualquer regra que tente diminuir direitos de quem trabalha em home office pode ser objeto de judicialização”, afirma Callegari.

Mariana dos Anjos Ramos, que pratica advocacia trabalhista e é mestre pela Faculdade de Direto da USP, ressalta que o Ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, esclareceu recentemente que “a intenção da medida provisória é que os trabalhadores em trabalho híbrido se movimentem com a maior liberdade possível, através dos acordos individuais com o empregador”, permitindo ao trabalhador ir à empresa uma ou duas vezes por mês ou quantos dias preferir durante a semana, por exemplo.

“Contudo, merece atenção dos juristas para que não haja retrocesso de direitos, como o incentivo ao trabalho somente por produção ou tarefa para que não haja o pagamento de horas extras, desvirtuação no contrato remoto de estágio e aprendiz e que se estabeleça as bases de uma negociação não apenas individual, mas também coletiva, com base em convenções e acordos coletivos que podem e devem ser negociados pelos sindicatos para atender as demandas reais de cada categoria. Muitas das questões envolvidas, se sancionadas pelo presidente, devem gerar questionamentos no Poder Judiciário, especialmente as vinculadas ao pagamento de horas extras”, avalia ela.

Teletrabalho, trabalho remoto, home office e trabalho híbrido

Para Ramos, a norma já começou falhando ao usar teletrabalho como um termo amplo, abrangendo todo tipo de trabalho remoto. “Primeiramente, precisamos diferenciar o trabalho remoto, teletrabalho, home office, híbrido e presencial. O trabalho remoto é gênero, dividido entre as modalidades de teletrabalho, home office e híbrido, em que há atividades exercidas à distância e com especificidades. O teletrabalho possui regramento próprio utilizando meios informatizados e telemáticos de comando, controle e supervisão, enquanto ao home office se aplicam as mesmas normas do trabalhador que exerce suas atividades de forma presencial”, afirma Ramos.

Para a especialista, a nova redação trouxe o regramento em relação ao trabalho híbrido, que, por sua vez, pode ser regrado pelas normas relativas ao teletrabalho ou ao trabalho presencial, a depender da previsão contratual. “Nessa hipótese, é permitido pelo legislador a realização de acordo entre empregador e empregado sobre os dias e horários de trabalho dentro ou fora das dependências da empresa. De qualquer forma, a MP 1.108/2022 não se atentou a essa diferenciação e se refere a todas essas modalidades como ‘teletrabalho’ ou ‘trabalho remoto'”, conclui ela.

Para Ramos, a medida garantiu maior proteção a parte dos trabalhadores.  “A MP retirou a necessidade do controle de jornada apenas para os trabalhadores em regime de teletrabalho que prestam serviço sob produção ou tarefa. Na redação antiga, todos os trabalhadores em teletrabalho estariam fora da necessidade de controle de jornada. A alteração trouxe mais definição e mais proteção aos trabalhadores nessa modalidade de regime”, avalia ela.

Definição de teletrabalho

Em relação aos principais artigos da norma, Callegari afirma que o artigo 75-b, que define o teletrabalho, teve uma alteração sutil, mas que pode provocar efeitos negativos aos trabalhadores. O texto atual, que ainda não foi modificado, já que as novas regras ainda não entraram em vigor, dispõe que teletrabalho é a prestação de serviços “preponderantemente fora das dependências do empregador”, com a utilização de tecnologias de informação e que não constituam trabalho externo. A nova redação do artigo abrange um pouco o escopo dos serviços, incluindo o termo “preponderante ou não fora das dependências do empregador” ao artigo.

“Note-se que a MP apenas incluiu o termo “preponderante ou não”. A medida provisória quis incluir na forma de teletrabalho o chamado “trabalho híbrido”, decorrente da nova realidade advinda da pandemia. Me parece que esse ajuste busca diminuir a proteção trabalhista ao estabelecer que o trabalho híbrido terá a mesma regra do trabalho 100% remoto, como ausência de controle de jornada, por exemplo. O texto anterior da CLT já era suficiente para regular a matéria”, afirma Callegari.

Trabalho híbrido

Outro ponto importante da medida provisória dispões que “o comparecimento, ainda que de modo habitual, às dependências do empregador para a realização de atividades específicas, que exijam a presença do empregado no estabelecimento, não descaracteriza o regime de teletrabalho ou trabalho remoto”.

Segundo Callegari, esse parágrafo já existia na redação anterior da CLT. “Mas, antes da pandemia, não existia a figura do trabalho ‘híbrido’, pelo menos não de maneira tão difundida quanto agora”, afirma ele. Dessa forma, essa redação pode ser usada para disciplinar um trabalho híbrido e que exija que o trabalhador compareça com determinada frequência na empresa, mas sem prever benefícios como auxílio-alimentação e transporte para esses dias. Os trabalhadores, portanto, podem acabar sendo prejudicados com essa nova redação da norma

“A Medida Provisória acaba por trazer o trabalho remoto (híbrido) como se fosse o equivalente ao teletrabalho quando, para fins de enquadramento como empregado (por ex, subordinação) e para fins de controle de jornada, o artigo 6º da CLT já prevê que é equivalente ao trabalho realizado no estabelecimento do empregador, podendo a previsão da MP representar um retrocesso de direitos aos empregados nesse sentido”, afirma a advogada. Segundo ela, objetivo do legislador também foi de permitir que empregador e empregado decidam sobre a presença ou não em determinados dias sem alteração no contrato de trabalho.

Estagiários e aprendizes

A MP que trata do trabalho remoto também prevê que estagiários e aprendizes podem trabalhar na modalidade de teletrabalho. Para Callegari, o teletrabalho remoto ou sistema híbrido é uma realidade surgida na pandemia e algo que não deve voltar a ser como era antes. “Assim, estabelecer a possibilidade de teletrabalho para estagiários e aprendizes não é, em si, algo ruim. Contudo, é claro que esse tipo de trabalhador requer um acompanhamento mais próximo. Assim, seria recomendável que existissem regras que exigissem um tempo mínimo de trabalho presencial para estagiários e aprendizes”, afirma ele.

Modalidade de teletrabalho deve estar prevista em contrato

Esse ponto é algo que já existe para o teletrabalho e que agora também está sendo estendida a quem realiza trabalho híbrido, na visão de Ramos. “É importante que haja a anotação em contrato para evitar fraudes nos regimes negociados entre as partes, sempre atentando para que haja um amplo esclarecimento do trabalhador sobre os termos do desempenho desse trabalho e não gerar obrigações excessivas para uma das partes”, afirma ela.

Além disso, a necessidade dessa formalização, segundo ramos, ocorre porque o trabalho à distância tem um capítulo próprio na CLT com suas peculiaridades. “Para segurança do empregado e do empregador, é importante haver essa previsão expressa, principalmente para estabelecer formalmente a aplicação de regras da CLT ao contrato de trabalho, como (i) se o contrato será por jornada, produção ou tarefa, (ii) se haverá controle de jornada de trabalho e (iii) de quem é a responsabilidade de pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos e infraestrutura para o trabalho remoto”, avalia Ramos.

Mudança de moradia e trabalho remoto

Outro ponto importante, que pode gerar ações judiciais, está relacionado à previsão, na medida provisória, de que os empregados em regime de teletrabalho que decidirem morar em outro município e for chamado a trabalhar de forma presencial, terá que arcar sozinho com as despesas de mudança para voltar a morar na região onde fica a sede da empresa, salvo estipulação contratual em contrário.

Para Callegari, essa norma pode gerar problemas. “As alterações do contrato de trabalho não podem ocorrer com prejuízo ao empregado. Assim, se o empregador estabelece que o trabalho será exclusivamente remoto, uma alteração para presencial significa prejuízo ao empregado com transporte e, até mesmo, moradia. Então essa regra se colide com outras normas já estabelecidas na CLT e pode ser objeto de judicialização. O ideal seria prever que a alteração do contrato de trabalho de remoto para presencial ocorreria às expensas do empregador, se for o caso, e não com prejuízo do empregado”, afirma ele.

Preferência para deficientes e pessoas com filhos pequenos

O ponto que parece ser menos controverso e que parece gerar uma maior sensação de avanço é o artigo da MP que prevê que “as vagas para trabalho remoto devem ser preenchidas preferencialmente por pessoas com deficiência ou empregada(o)s que tenham filhos ou criança sob guarda judicial de até 4 anos de idade”.

Para Callegari, essa é uma evolução importante e que definitivamente caracteriza o teletrabalho como uma condição mais flexível e benéfica para a maioria dos trabalhadores.

Ramos avalia que a previsão beneficia os mais vulneráveis, que demandam maior proteção social do sistema. “Porém precisa ser visto como ponto de atenção para não causar o efeito reverso de desestimular a contratação de pessoas nessas condições por eles terem essas prerrogativas diante da nova previsão legislativa”, afirma ela.