O colapso financeiro nos Estados acabou expondo a “maquiagem” nos números avalizada pelos Tribunais de Contas e jogou os holofotes sobre a fiscalização precária exercida pelas Cortes estaduais, loteadas de conselheiros de perfil político. Indicações de deputados, secretários ou familiares de governadores ou de pessoas influentes na esfera local são comuns e acabam desaguando numa postura leniente dos órgãos que deveriam exercer o controle das despesas públicas.

Um levantamento do cientista político Audálio Machado, realizado em 2017 durante seu mestrado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mostrou que 126 de 186 conselheiros de Tribunais de Contas dos Estados tinham origem política e vinham de cargos eletivos ou de direção e assessoramento nos governos estaduais. Outros nove foram nomeados pelas relações familiares.

O estudo analisou o cargo ocupado pelos conselheiros no período imediatamente anterior à indicação. Os resultados mostraram que 85 eram deputados estaduais e outros 29 eram secretários estaduais quando tiveram seus nomes apresentados para ocupar uma cadeira no plenário dos TCEs.

A Constituição prevê que os tribunais estaduais serão compostos por sete conselheiros, três deles indicados pelo governador, respeitando a regra de que um precisa ser auditor e outro, membro do Ministério Público de Contas. As quatro demais vagas são recomendadas pela Assembleia Legislativa.

Na prática, o governador tem apenas uma vaga de livre escolha, mas nem sempre isso é respeitado. Pesquisador do tema, o professor Carlos Pereira, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da FGV, identificou que nem todos os Estados cumprem essa exigência constitucional, o que torna o tribunal mais “dócil” em relação ao governo. Já onde há maior presença de técnicos no corpo de conselheiros, a Corte tende a ser mais combativa.

Existe no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para fixar critérios técnicos para as indicações dos Tribunais de Contas. O texto de 2013 chegou a ser arquivado e hoje está parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.

A questão central para o cumprimento ou não da exigência de nomeação de técnicos, segundo Pereira, é a alternância de poder no Executivo estadual. “Nos Estados em que a elite que está no poder não alterna, o Tribunal de Contas tende a ser dócil, ele é dominado pela elite governante”, afirmou. Na época da pesquisa, publicada em 2009, ele identificou que o Rio de Janeiro – sob influência do MDB – tinha um dos mais dóceis Tribunais de Contas. “O problema não está no desenho institucional dos tribunais, mas na competição política”, disse.

No Rio, após a emblemática prisão de cinco dos sete conselheiros do TCE-RJ o então governador Luiz Fernando Pezão tentou indicar para uma das vagas o deputado estadual Edson Albertassi (MDB), que estava na mira do Ministério Público Federal (MPF) e hoje está preso. Ele havia sido o relator das contas de 2016 e deu parecer pela aprovação, contrariando a recomendação unânime do tribunal pela rejeição.

Relatos da época são de que houve pressão para que três conselheiros substitutos do TCE-RJ renunciassem à vaga para abrir caminho à indicação de Albertassi. Pezão, por sua vez, tentou convencer o então procurador-geral do Estado, Leonardo Espíndola, a emitir um parecer avalizando o nome do então deputado. Espíndola, que considerava a alternativa uma “desmoralização jurídica”, se recusou a cumprir a ordem e acabou demitido.

Aval às contas

O Estadão/Broadcast analisou os pareceres dos conselheiros dos TCEs sobre as contas dos sete Estados que decretaram calamidade financeira. Todos os órgãos foram procurados pela reportagem.

Em Goiás, a Corte recomendou a aprovação com ressalvas das contas de 2017, apesar de a área técnica ter apontado crime de responsabilidade do ex-governador Marconi Perillo por autorizar aumentos de despesas com base em receitas que não existiam. O relatório técnico também detectou violação dos mínimos constitucionais em saúde e educação. O TCE-GO informou à reportagem que “o parecer pela desaprovação ocorre em situações excepcionais, quando não fica demonstrado o esforço de ajuste fiscal ou, por exemplo, há indício de crime de responsabilidade fiscal” e que “não foram encontrados elementos suficientes” para recomendar a reprovação.

Em Minas Gerais, o TCE-MG deu parecer pela aprovação das contas em 2016. A análise do balanço de 2017 ainda não foi concluída porque há um impasse no plenário entre os que querem aprovar as contas do ex-governador Fernando Pimentel e os que recomendam a rejeição. Houve pedido de vista e o tribunal informou que aguarda a manifestação do conselheiro que fez a solicitação.

No Rio Grande do Sul, o TCE-RS também recomendou a aprovação das contas nos últimos anos, apesar do déficit recorrente. Em resposta, o tribunal informou que a crise “não foi criada em uma ou duas gestões” e que as análises dos conselheiros “leva em consideração os esforços efetivos realizados pelo gestor, até porque responsabilizá-lo por circunstâncias que antecedem sua administração seria manifestamente injusto”.

Em Roraima, o TCE-RR informou que as contas de 2017 ainda estão em análise. No Rio Grande do Norte, o tribunal recomendou a reprovação das contas de 2016, informação mais recente disponível no site da Corte – o órgão não respondeu aos questionamentos da reportagem. No Rio de Janeiro, as duas últimas recomendações foram pela rejeição. Antes da prisão dos conselheiros, os pareceres eram sempre pela aprovação das contas.

Em Mato Grosso, o TCE-MT também deu parecer pela aprovação, apesar de os auditores haverem pontuado irregularidades “gravíssimas”. A Corte não retornou aos pedidos de entrevista da reportagem.

Cúmplices da quebradeira

Defensor de uma revisão no modelo de indicações políticas para os Tribunais de Contas, o procurador junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) Júlio Marcelo de Oliveira disse ao Estadão/Broadcast que a leniência dos conselheiros dessas Cortes nos Estados resultaram num “fracasso retumbante da responsabilidade fiscal no País”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual é o papel dos Tribunais de Contas na crise dos Estados, muitos em calamidade financeira?

O papel é central. Eles foram incumbidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de serem os guardiões, os defensores dos limites da LRF, e eles falharam valorosamente nessa missão. Se omitiram, ajudaram a construir interpretações que deformaram a lei, especialmente no cálculo do limite de (gasto com) pessoal. O resultado é um fracasso retumbante da responsabilidade fiscal no País, infelizmente.

Os TCEs são cúmplices dessa quebradeira?

Sem dúvida. Se eles não tivessem aceitado essas interpretações lá atrás, o Estado tinha de fazer o dever de casa. O ajuste já teria sido feito. Alguns Estados não estão quebrados, por que será? Provavelmente, foram mais disciplinados nas suas contas.

Como os Estados saem dessa situação?

Tem de ter demissão. O Supremo precisa julgar uma ação direta de inconstitucionalidade proposta logo que a LRF foi aprovada sobre a possibilidade de redução de jornada com proporcional redução de salários. Esse dispositivo está suspenso por uma liminar do Supremo. O governador tem de ter instrumento, e reduzir jornada é menos dramático que demitir. Isso precisa ser permitido. Sem o enquadramento das despesas com pessoal, é inviável. Não adianta emprestar dinheiro para o Estado se ele não se enquadra, ele não vai ter capacidade de se sustentar.

A LRF dá prazo de oito meses para ajustar a despesa com pessoal. Há quem defenda agora prazo maior para isso, diante do grau de desajustes avalizados pelos TCEs…

Para algumas situações mais graves, talvez seja necessária uma norma de transição com prazo maior.

A crise dos Estados também trouxe à tona o debate sobre as indicações políticas nos Tribunais de Contas. É preciso haver mudança?

Sem dúvida. A indicação política está na raiz dessas interpretações tão benevolentes com os governantes, o Poder Executivo, porque deixa o órgão exposto à captura política. O Tribunal de Contas está ali para fazer um papel antipático, é o que diz não. O governador quer fazer assim, e ele diz ‘não pode, a lei não permite’. Tem o tempo todo um desgaste de enfrentamento. Infelizmente, na nossa experiência histórica, a indicação política mostrou que as pessoas que vão para lá são muito lenientes e benevolentes com os governadores, não gostam de ter enfrentamentos. Pessoal da política não gosta de dizer não, gosta do sim, gosta de viabilizar, de dizer ‘precisamos ajudar, ele está bem intencionado’. Eles não têm o olhar de preservar o futuro. Se você flexibiliza hoje, vai estragar o futuro.

Mas aí valeria para o TCU também?

Eu defendo que deve mudar para todos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.