Quando escolhi seguir o jornalismo, meu pai, que atuava no campo da engenharia, disse: “Que bom, admiro profissões braçais”. Não quero discutir as implicações politicamente corretas ou incorretas da frase. Era uma maneira, a seu modo, de dizer que seria algo mais trabalhoso do que eu imaginava. E sempre me lembro disso quando penso que há uma quantidade absurda de pessoas de alta formação execrando o termo liberal. O que é ainda mais evidente no campo de conhecimento das Ciências Humanas, no qual atuo desde os anos 80 (como jornalista) e dos anos 90 (na academia, como professor). Não há xingamento maior do que rotular alguém como liberal ou (wow!), neoliberal. É um encerra-discussão. Uma espécie de Reductio ad Hitlerum — aquele momento do debate em que na falta de argumentos alguém puxa um, “ah, mas Hitler fez exatamente isso”. Hoje, virou, “ah, mas isso é neoliberal”.

Entender o liberalismo e suas origens ajudaria — e muito — que parte considerável e admirável da intelligentsia brasileira passasse a lutar com mais armas contra quem de fato está do outro lado. Vou estressar meu ponto: sem liberalismo o Brasil não sairá desse lodo institucional provocado por JB, seus militares (“As minhas Forças Armadas”) e o pior Congresso da história brasileira, resumido à imagem abjeta de Arthur Lira. O conceito do que é liberal costuma ser datado no século 17 por meio de britânicos como John Locke. Mas desde muito antes, na Idade Média e no Renascimento, havia pulsações liberais. Qualquer um que questionasse o absolutismo real ou a autoridade papal já trazia um DNA liberal.

De forma resumida, o liberalismo é um conjunto de teorias e práticas políticas, econômicas e sociais. Elas estão lastreadas em dois grandes elementos: 1) liberdade individual e igualdade entre as pessoas + 2) governos representativos democráticos e de poder limitado. Em ambos os fatores da equação, quem rege as relações é o estado de direito. É ele que limitará o que considero minha liberdade individual (não tenho permissão para te matar, por exemplo) e especialmente o poder do Estado (não posso driblar a Constituição para fazer a PEC da Reeleição). Eu quero viver num lugar assim. Um espaço no qual minhas liberdades individuais prevaleçam (não quero uma idiota dizendo se devo usar azul ou rosa) e que o Estado seja controlado (não posso ser o chefe da Nação, atacar o sistema que me levou à cadeira e nada acontecer).

Ah, mas esse é o liberalismo político, o econômico é outra coisa, diriam. Bem, lamento dizer que não. Por aqui, a elite letrada que massacra Adam Smith (e provavelmente nunca o leu — tudo bem, o livro é longo mesmo, dependendo da edição tem entre 600 e 700 páginas) usa a frase da “mão invisível do mercado” como outro exemplo de Reductio ad Hitlerum. Pois Smith escreveu que se cada pessoa “buscar apenas seu próprio ganho isso é levado por uma mão invisível a promover um objetivo que não estava na intenção inicial”. Não há nada sobre ‘seja egoísta e danem-se os pobres’. E o que ele cita, na sequência, é esclarecedor: “Nem sempre isso é ruim para a sociedade”. Ou seja: ele nem crava que seria bom, ele diz ‘pode ser bom’. Mas cabe à sociedade cuidar da sociedade.

É fato que governos neoliberais, em especial na América Latina, fizeram uma transferência de bens do Estado para amigos e pouco cuidaram do welfare state numa região de altíssima desigualdade. Isso é grave. Mas não é liberalismo. Não encontro um só autor sério que exclua do pensamento liberal soluções como renda mínima, transferência de renda, políticas inclusivas e de equidade. O oposto. Transferir dinheiro, e não leite, é ser liberal na essência. Como diz um amigo, se o cara quer comprar leite ou drogas, a decisão é dele e não do Estado. Concordo.

E aqui voltamos ao Brasil. Marque um sim ou um não para cada afirmativa a seguir tendo em mente nosso chefe de Estado, o JB.

a) Ele respeita liberdades individuais e a igualdade?
b) Ele respeita a democracia?
c) Ele respeita o estado de direito?
d) Ele respeita os limites do Estado?
e) Ele segue regras de mercado para a economia?São cinco nãos. Esse quinteto é o cânone liberal por excelência.

Não deve existir um Índice Global de Burrice, como o Gini (desigualdade) ou o IDH (desenvolvimento humano). Mas ter JB no Partido Liberal é a prova irrefutável de que ganharíamos a Copa do Mundo da Estupidez. Não existe nada mais antiliberal que esse cara. O século 21 será marcado pela releitura do lindo lema francês Liberté-Égalité-Fraternité para Diversidade-Equidade-Inclusão. Só que não dá para estarmos nesse novo mundo com JB na ativa.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.