Sueli Krengre da Silva vive desde que nasceu na comunidade indígena de Tenente Portela, no Rio Grande do Sul. Em seus 43 anos, ela tem observado o idioma nativo Kaingang ser menos falado a cada dia. Atualmente, dos 30 mil indígenas que moram em aldeias que falam Kaingang espalhadas pelo Sul e Sudeste do Brasil, apenas metade o utiliza com frequência. A filha de Sueli, Shaiane Risóg Cândido Mineiro, de 19 anos, já não fala nem escreve a língua da mãe, considerada pela Unesco “definitivamente em perigo de extinção”. E, quando uma língua morre, legados culturais inteiros somem junto. Para enfrentar esse destino que parece inevitável, a tecnologia tem sido arma fundamental. A Motorola Mobility, controlada pelo grupo chinês Lenovo, acaba de disponibilizar o Kaingang em seus celulares com o sistema operacional Android 11 e em todos os dispositivos que permitem a atualização para a nova versão. É a primeira fabricante de smartphones a acrescentar língua indígena nos dispositivos. “Vamos ajudar na inclusão digital, na história e cultura, mas também na autoestima dessas comunidades”, disse Renata Altenfelder, diretora executiva global de marketing da Motorola.

O Nheengatu, falado na Amazônia, está entre os 83 idiomas disponibilizados na interface dos aparelhos Motorola. Juntos, Kaingang e Nheengatu são falados por cerca de 50 mil indígenas. São 30 mil do, nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e São Paulo. O segundo é usado por 20 mil pessoas em aldeias amazônicas, englobando Brasil, Colômbia e Venezuela. São dois dos 216 idiomas falados no Brasil, segundo a plataforma de estudos Ethnologue — de acordo com o último Censo realizado pelo IBGE, em 2010, eram 274. As perdas registradas foram gigantescas. Estima-se que havia cerca de 1,3 mil línguas nativas antes da chegada dos colonizadores.

E o cenário de destruição linguística continua devastador. Das pouco mais de duas centenas restantes, segundo a Ethnologue, 57 pararam de ser transmitidas entre gerações e 99 são faladas apenas por velhos e estão morrendo. É o caso da Kaingang e Nheengatu.

Sueli, que foi tradutora do projeto, comemora a inovação. “A língua portuguesa estava dominando a nossa. As crianças não tinham mais motivação em aprender nossa língua porque a tecnologia não a aplica. Isso agora vai mudar”, disse. Para o professor da Unicamp Wilmar da Rocha D’Angelis, doutor em linguística, especializado em idiomas indígenas e em teoria fonológica, essas línguas precisam de uso social relevante, não só em assuntos do passado. “É necessário que estejam em lugares de prestígio, no computador, no celular, na internet…”, afirmou. “Todo o esforço é para dotar a língua materna de mais visibilidade e de mais ferramentas que a fortaleçam. É um passo para o empoderamento”, disse D’Angelis, que coordenou o trabalho após contato do engenheiro de software Robert Melo, líder de internacionalização da Motorola e idealizador do projeto.

INOVAÇÃO Kaingang e Nheengatu estão disponíveis na interface dos aparelhos com Android 11 e em atualizações desse sistema operacional. (Crédito:Divulgação)

RECEPTIVIDADE Uma preocupação levantada para dar andamento ao projeto foi a consequência negativa que poderia haver com a invasão tecnológica a comunidades indígenas que sobrevivem basicamente de agricultura e artesanato, e lutam para manter tradições. Mas houve abertura e apoio dos líderes e dos integrantes das aldeias, pois o uso de smartphones já é comum entre eles. Segundo pesquisa do IBGE de 2018, no Amazonas, por exemplo, em 100% das casas com acesso à internet o celular está presente. E nas comunidades indígenas não é diferente. O que muda é o sinal de banda larga, que em alguns casos é falho. Eles têm receptividade para a tecnologia. “O celular tornou-se necessidade, especialmente junto à juventude. E é exatamente onde a língua vai perdendo a cadeia de transmissão”, disse o professor.

Da mesma forma que Sueli Krengre da Silva comemorou a possibilidade de manter o Kaingang vivo no Sul do País, a 4 mil km, no Amazonas, Ozias Yaguarê Yamã Glória de Oliveira Aripunãguá, também exaltou a oportunidade de o Nheengatu permanecer ativo em sua comunidade. Entre seus amigos e familiares, a língua foi enfraquecendo e muitos têm vergonha de usá-la hoje em dia, segundo ele. Para Aripunãguá, o trabalho feito pela Motorola promove ganhos para seu povo e para a floresta, já que 70% de nomes de peixes são de origem Nheengatu, e entre 50% e 60% dos nomes de cidades e de rios são oriundos desse idioma. “Não se pode falar em Amazônia sem falar em Nheengatu porque os dois são atrelados. Faz parte da essência, é o âmago. A alma da Amazônia é o Nheengatu”, disse o indígena, que também participou da equipe de tradutores e revisores do projeto. Renata, da Motorola, diz que o papel da empresa é “tornar a tecnologia acessível e democratizar seu acesso a todos”.

A TRADIÇÃO E O FUTURO Doutor em linguística, Wilmar D’Angelis (de pé) entende que os idiomas maternos precisam estar em lugares de prestígio, como computador e celular, para que sejam preservados. (Crédito:Divulgação)

Outro integrante da comunidade amazônica, Cauã Wirapayé acredita que de fato haverá uma revitalização para dar maior prestígio ao idioma nas aldeias. “Saber que alguém vai poder pegar o celular em qualquer lugar do mundo e colocar em Nheengatu, nossa, é inacreditável. Até alguns dias atrás, isso não poderia ser imaginado.” Mais precisamente há 365 dias. Foram quatro meses de pesquisa, captação de colaboradores e treinamento. E oito meses para tradução e revisão até chegar às mais de 500 mil palavras das suas línguas. Tudo traduzido praticamente do zero.

Para se ter ideia da dimensão do processo, estima-se que no Português existam cerca de 600 mil verbetes. Algumas traduções foram feitas por neologismos ou aproximação de palavras da língua portuguesa, porque certas palavras não fazem parte do cotidiano das comunidades. Como “obrigado”, por exemplo, que não existe no conceito de fala Kaingang. “Não é uma regra de etiqueta para eles, que apenas demonstram que estão gratos. Nesse caso, o termo foi adaptado por aproximação ao Português”, disse Juliana Rebelatto, gerente de Línguas e Tradução da Motorola.

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“Nossas crianças não tinham mais motivação em aprender nossa língua. Isso agora vai mudar” Sueli Krengre da Silva, tradutora do projeto.

A empresa contratou dez indígenas, cinco de cada comunidade, para realizar o trabalho, coordenado pelo professor Wilmar D’Angelis. Para executar o serviço, foi necessário disponibilizar alguns computadores e fornecer cursos para ensinar os indígenas a atuar na plataforma da Motorola. Um dos maiores desafios, no entanto, foi estabelecer e cumprir prazos sem flexibilidade de uma companhia multinacional para integrantes de comunidades que sobrevivem basicamente de agricultura e artesanato, com o agravante de estarmos em meio à pandemia de Covid-19. “Nós cobramos e eles conseguiram entregar”, disse Renata Altenfelder.

A disponibilidade de Kaingang e Nheengatu no sistema operacional Android 11 é um avanço para a manutenção das línguas ativas. Mas não deve parar por aí. A Motorola segue sua atuação junto ao Google para disponibilizar esses idiomas em AOSP (Android Open Source Project) e Gboard (aplicativo de teclado virtual desenvolvido pelo Google). O objetivo é que as duas línguas indígenas sejam distribuídas a fabricantes e tambem para desenvolvedores, a fim de incluí-las em seus dispositivos. A companhia também trabalha em parceria com o Consórcio Unicode para assegurar que todos os dados das línguas coletados com seu apoio sejam de fonte aberta. “Não é só ler o que está no telefone, é preciso digitar também. Pelo WhatsApp, por exemplo. É mais um legado que vamos deixar”, afirmou Renata Altenfelder.

É a tecnologia a favor da língua e da cultura indígena. Ou melhor: Tecnologia ta kanhgág vī mré ag tý nén ū hyn han fã jé ke, em Kaingang, e Kariwa tekinulugia umunhã arã īdígena nheēga asuí kitiwara kirībawa píri, em Nheengatu.