Dois séculos após sua morte, Napoleão continua a alimentar paixões: “o imperador dos franceses”, morto deposto e exilado aos 51 anos após ter dominado a Europa, ainda hoje provoca embates entre partidários e adversários.

A seguir, os principais argumentos no campo de batalha memorial deste bicentenário:

– Construtor do Estado moderno –

O principal “legado” de Napoleão é “a criação e desenvolvimento de um Estado moderno, poderoso, centralizado (…), capaz de gerar um conjunto de regras e de as aplicar eficazmente de forma uniforme em todo o território nacional”, estima o cientista político Gérard Grunberg (“Napoléon Bonaparte Le noir génie”).

Bonaparte não foi o inventor dos departamentos, instituídos durante a Revolução Francesa, mas das prefeituras criadas em 1800. Em seu apogeu, em 1811, o império contava com 130 departamentos após a anexação de territórios vizinhos.

– Pai do Código Civil –

Outro legado de Napoleão Bonaparte, o Código Civil, promulgado em 1804, implementa a igualdade de todos perante a lei e se baseia em dois pilares: a propriedade e a família.

O Código Civil permitiu “consagrar as conquistas da Revolução: igualdade, fim dos direitos feudais”, sublinha o historiador Jean Tulard (“Dictionnaire amoureux de Napoléon”).

– “Misógino” –

Crítica recorrente, Napoleão foi “um dos maiores misóginos”, segundo a ministra francesa responsável pela Igualdade de Gênero, Elisabeth Moreno.

É verdade que o Código Civil consagra “o poder do pai de família sobre a mulher e os filhos”, segundo os historiadores Jean-Luc Chappey e Bernard Gainot.

Em 1804, o artigo 213 do Código Civil afirmava: “O marido deve proteção à esposa, a esposa obediência ao marido”. O artigo 324 do Código Penal de 1810 “desculpa” o assassinato pelo marido de uma mulher adúltera em caso de “flagrante delito no lar conjugal”.

Napoleão “criou um lugar para as mulheres (…) que não era formidável”, reconhece o historiador Patrice Gueniffey. Mas é também o reflexo da “sociedade camponesa e patriarcal” da época.

– “Coveiro” da República –

“A República não pode prestar homenagem oficial àquele que foi seu coveiro, pondo fim à primeira experiência republicana de nossa história para criar um regime autoritário”, indignou-se o deputado da França Insubmissa Alexis Corbière (no Le Figaro).

Em novembro de 1799, o general Bonaparte chegou ao poder por meio de um golpe militar, o “18 de Brumário”, que acabou com o Diretório, mas não com a Primeira República (que terminou em 1804 com a proclamação do Império).

“Para dizer a verdade, o golpe de Estado salvou as conquistas da Revolução: igualdade, abolição dos direitos feudais, venda de propriedades nacionais”, defende Jean Tulard.

O imperador governou de forma autoritária, mas usando o plebiscito. O historiador Thierry Lentz lembra maliciosamente: “Quando Napoleão se tornou imperador, com um plebiscito popular, ele foi considerado ‘imperador da República'”.

– “Ancestral dos ditadores?” –

“Napoleão é o ancestral dos ditadores do século XX?”, pergunta Jean Tulard. “O seu autoritarismo (…), o seu sentido de Estado forte, o seu desprezo pelo regime parlamentar, o seu imperialismo e sobretudo o seu gênio para a propaganda; tudo pode fazer-nos pensar que sim”.

Mas “não há em Napoleão nem a ideologia assassina, nem o delírio racista daqueles que se apresentaram como seus sucessores”, acrescenta o historiador.

– Aquele que restaurou a escravidão –

A escravidão foi abolida nas colônias francesas em 1794 pela Convenção. Mas sob o Consulado, a lei de 20 de maio de 1802 a restabeleceu por ocasião da restituição pela Inglaterra da Martinica onde a escravidão nunca havia sido abolida.

“É o documento que mais incrimina a memória de Napoleão”, reconhece Jean Tulard.

No entanto, para o historiador, Napoleão agiu principalmente por cálculo econômico em uma época em que a escravidão era abundante em todos os lugares e “chocava apenas um punhado de defensores dos direitos humanos à frente de seu tempo”.