Economista afirma que Brasil terá contingente cada vez maior de pessoas buscando o mercado de trabalho. Boa parte, sem a qualificação necessária.

Alessandra Ribeiro tem uma vocação: olhar números para traduzi-los. Faz isso como uma chef ao preparar seu prato principal. Usa ingredientes de qualidade e mantendo seus sabores. Com esse rito, traz nesta entrevista uma leitura macroeconômica sem fugir do inevitável cenário político. Para ela, a Saída Brasil — já que o Custo Brasil é bem conhecido — é o mesmo que aprendeu em casa, com os pais. Construir como legado a junção de esforço, dedicação e valores. Traduzindo: ética, técnica e estética. “Gerar valor é algo que deve embutir sentido de vida.”

Temos quase 15 milhões de trabalhadores desocupados, mesmo com indicadores de crescimento da economia. Por quê?
Alessandra Ribeiro — A gente deve ter o efeito dessa recuperação no mercado de trabalho. Vimos isso em outras economias, como na americana, em que no primeiro momento da pandemia a taxa de desemprego saiu de 3,5% para quase 15% e agora está em 5,8%. Foi para a estratosfera, mas tem voltado bem. É o que esperamos aqui também.

O que explica essa demora na recuperação para quem busca trabalho?
Houve a adoção de programas de suporte na pandemia, como o BEM (Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda), mas essencialmente focado no mercado formal. O trabalhador informal, aquele que sofreu mais, não teve esse suporte. Além disso, os setores que mais sofrem na pandemia são os de uso intensivo da mão de obra e que muitas vezes empregam o trabalhador menos qualificado, informal. Esses setores, especificamente o de Serviços Prestados às Famílias, pelos dados de abril, ainda estava 40% abaixo dos níveis pré-pandêmicos.

O que mostra um PIB muito desequilibrado.
Sim. Quando a gente fala PIB, engloba aí muita coisa. Ao olhar para os setores você vê diferenças grandes entre eles. Com a normalização do quadro sanitário, com a vacinação, o setor de Serviços voltará à normalidade e a contratar de forma significativa.

A taxa de desemprego deve recuar, então?
Não exatamente. Há geração de postos de trabalho? Sim. Mas o ritmo está lento, porque as pessoas que deixaram o mercado estão voltando — e devem voltar muito mais a partir do segundo semestre. Por mais que a economia gere postos ela não vai absorver o contingente que volta.

Mesmo com PIB acima de 5% este ano?
O pico na taxa de desemprego vai ser este ano. Justamente por causa desse fenômeno, de ter mais gente voltando a buscar emprego. O desemprego deve cair bem gradualmente.

Em que ritmo?
Temos um PIB médio crescendo a partir de 2022 em 2% e pouco. Com essa taxa a gente só volta a ter a taxa de desemprego na casa dos 12% em 2025. Em 2019 fechou a 11,9%.

Voltar para patamares de um dígito na taxa de desemprego é algo para quando?
No meu cenário de dez anos não acontece.

“O Banco Central (presidido por Roberto Campos Neto) foi muito agressivo e rápido para estimular a economia. Depois, se mostrou tranquilo em relação à inflação” (Crédito:Adriano Machado/REUTERS)

Corremos o risco de viver um período de hiperdesemprego como vivemos a era da hiperinflação? Algo que ultrapasse o endêmico?
Uma boa parte do desemprego, desse contingente que voltará a buscar uma vaga, o mercado vai absorver. Mas o que acontece, e a pandemia deixou isso mais dramático, é a questão da qualificação da mão de obra. Porque estamos num período de muita mudança, de muita inovação, que tem exigido mais qualificação dos profissionais, e a gente já tem déficit tremendo nessa seara. Vai agravar. Porque com a pandemia muitas crianças não conseguiram acompanhar aulas, uma boa parte desapareceu das escolas… Essa volta, quando acontecer, será com um nível de deficiência muito grande. Isso significa que o problema de sempre, de qualificação da mão de obra, não apenas está muito presente como pode ficar pior.

O que passa por deficiências históricas de nosso sistema educacional.
Sim, e isso deve exigir, talvez, uma ação de Estado, no sentido de promover a inserção dessas pessoas com um programa de qualificação mais intenso. Porque não apenas as coisas estão mudando muito rapidamente, o que exige essa qualificação, de um lado, como de outro a gente tem um sistema de educação que não acompanha essa realidade, que já vinha de antes da pandemia. O grande canal de inserção dessas pessoas é a qualificação. Em qualquer cenário que a gente faça nas projeções aqui na Tendências o que traz a diferença é anos de escolaridade. Sempre.

O que gera também gargalos de emprego em determinadas áreas?
Isso mesmo. Você tem em vários países e mesmo no Brasil, com desemprego médio elevado, áreas em que não existem profissionais mais qualificados disponíveis.

As esperadas reformas, nesse sentido, foram decepcionantes para mudanças estruturais?
Nós na Tendências nunca fomos arrojados em relação ao resultado que viria das reformas, no sentido de incorporar grandes mudanças, que pudessem alavancar a produtividade e gerar saltos de crescimento. Apenas no caso da Tributária esperávamos mais. A gente via a PEC 45, a PEC 110, ou elas juntas, e enxergava potencial de afetar positivamente a produtividade. As reformas até saem, mas com uma qualidade comprometida. Muito aquém do que a gente precisaria. Até a Índia, com um sistema tributário muito mais complexo que o nosso, aprovou a sua. E a gente ficou. Perdemos uma boa janela.

Uma chance sem volta?
Vimos que algumas coisas saíram. Marco do saneamento, marco regulatório do gás, que está fluindo, uma consolidação da autonomia do Banco Central… Mas sobre as grandes reformas, nós não apostávamos tanto porque havia sinais, em relação a essa administração, desde o começo, de promessas difíceis de serem realizadas.

Em relação à política macroeconômica, a percepção é de que pelo menos o Banco Central tem feito o papel de deixar certa previsibilidade para os players econômicos, não?
No começo da pandemia, no auge da crise, quando ninguém tinha real dimensão sobre os impactos de tudo isso, o Banco Central brasileiro foi muito agressivo e rápido para tentar estimular a economia, fosse com redução de juros, fosse com várias medidas para dar fluidez ao crédito. Foi um BC com decisões que se mostraram muito eficientes. Mas depois o que aconteceu? A gente via o BC mais tranquilo em relação à inflação. Aí uma parte do mercado começou a se antecipar e dizer, ‘não, essa inflação vai se mostrar pior do que o BC imagina’. E por um tempo o BC se mostrou ainda tranquilo. Só que nessa disputa o mercado levou. Acertou.

Despertou o BC?
O fato é que por um motivo ou outro, commodities, câmbio depreciado, energia elétrica, a inflação está surpreendendo muito. Diante dessa realidade o BC, pelo menos, ajustou o discurso rapidamente e vai ajustar a taxa Selic para um nível neutro.

O que isso significa?
Que a política não vai estimular a economia, mas também não vai contrair. O que é uma taxa de juro que se estima em 6,5%, alguns em 7%, ao longo deste ano. Mas há gente que se preocupa ainda mais com a inflação e acredita que o juro chegue a 7,5%. A gente aqui na Tendências ainda acredita em 6,5% porque aí a política fica neutra e no ano que vem ela já não ajuda mais (a puxar) a economia e trabalha para manter a inflação na meta ou próxima da meta em 2022.

Com a agenda política, com eleições em 2022, você não acredita que possa existir pressão em cima do BC para deixar essa neutralidade de lado e adotar uma política mais expansionista?
Vejo isso muito mais presente numa orientação no plano fiscal do que no Banco Central.

“Não apostamos fortemente nas reformas. Até a Índia, com sistema tributário muito mais complexo, aprovou uma reforma. Perdemos uma janela” (Crédito:Edilson Rodrigues)

O que explica, mesmo com tantos problemas, o PIB estar surpreendendo positivamente?
Há um conjunto. As grandes economias, que são os nossos principais mercados, crescendo bem, acompanhado de alta de commodities, que traz aumento de renda. A própria questão desses estímulos todos, monetários e fiscais. A menor eficiência das medidas de isolamento — em março e abril elas foram bem menos eficientes em relação ao mesmo período do ano passado e o custo disso são vidas. Mas o fato é que mudou a dinâmica de certos setores. Esses pontos explicam a resiliência do PIB e números melhores.

O que poderia ser feito para crescermos de forma ainda mais tracionada?
Haveria crescimento ainda mais forte não fossem ruídos da agenda política. Atrapalhou no ano passado e continua atrapalhando. Assim como a questão fiscal, que continua tema sensível. A clareza dessa agenda, a coordenação melhor entre Executivo e Congresso, contribuiriam para o crescimento. Esses ruídos limitam, tanto que o indicador de incerteza ainda está muito elevado.

Isso é mitigado por um mercado global expansionista, em que o FMI estima crescimento mundial acima do brasileiro. Mas o Brasil regrediu em política externa e na questão ambiental. Como você enxerga esses temas?
Se a gente pegar investimento estrangeiro no Brasil no ano passado houve queda dramática. A questão é separar o quanto disso é pandemia e o quanto contaminação com os temas como diplomacia externa e questão ambiental. Mas há evidências de que esses ruídos atrapalham. Esse caldo mantém a incerteza elevada.

Não há como pensar a economia sem pensar dois cenários: com impeachment ou sem.
Trabalhamos com o cenário mais provável do momento. E nele, hoje, nossa avaliação é de que o presidente termine o mandato. Até porque todos esses eventos relacionados à Covaxin têm envolvido muita gente. Figuras do Centrão, militares, o próprio presidente. E quando envolve muita gente se torna complexo e mais difícil que ocorra um impeachment. Nesse ambiente o principal risco é a perda de popularidade adicional.

E isso nos levaria aonde?
Ao forte risco de populismo econômico para garantir a reeleição.