Enquanto indústrias poluentes e o consumismo exagerado forem medidas de sucesso de um país, políticas públicas como o Acordo de Paris serão ineficazes.

À frente da entidade que promove o consumo consciente, o Instituto Akatu, Helio Mattar defende que o modelo de produção vigente na maioria absoluta dos países levará a um rápido esgotamento do planeta. A solução, segundo o dirigente, passaria por uma nova economia em que os direitos individuais e os recursos naturais sejam vistos como riquezas e não obstáculos. “Para mudar o cenário é preciso que a sociedade civil se organize e que demande mudanças de governos rumo a posições mais conscientes e responsáveis”, disse à DINHEIRO.

DINHEIRO — Como o Instituto Akatu definiria a evolução do consumo nos últimos anos?
HELIO MATTAR — No ano de 2019, ainda pré-pandemia, a humanidade usou 70% a mais dos recursos naturais do que a natureza é capaz de regenerar. Veio a pandemia e em 2020 o índice caiu para 60%. Esses 10% fizeram a diferença: vimos águas mais limpas e o ar menos poluído, por exemplo. Em 2021, o patamar voltou a 70%. Entre as consequências, o aumento da tempeatura global e desastres ecológicos mais intensos e frequentes. A origem de todo esse ciclo é o nosso atual modelo de produção e de consumo.

O que exatamente seria esse “atual modelo”?
O culto ao consumo exagerado. Veja que dado interessante: em 2020, a classe média global era de cerca de 3,2 bilhões de pessoas, cerca de 40% da população mundial, e a estimativa para 2030 é que ela passe a 4,9 bilhões. Ou seja, em dez anos, teremos 1,7 bilhão de consumidores a mais na classe média do que no início da década. Isso significa que se não mudarmos nada no modelo atual baseado majoritariamente na extração de recursos naturais, será preciso o equivalente a dois e meio planetas Terra para sustentar o consumo nos mesmos padrões de hoje.

A classe média está aumentando, o que impulsiona o consumo e leva a um problema ambiental. Em paralelo, crescem problemas sociais como a fome e o desemprego. Como garantir condições de vida digna às novas gerações?
No Akatu, trabalhamos com cinco elementos no que chamamos de Equação de Sustentabilidade. O primeiro, seriam as mudanças tecnológicas para alternativas menos intensivas em uso de recursos naturais e menos poluentes. O segundo, mudanças de políticas públicas. Um bom exemplo é a construção de um mercado de carbono. Em terceiro está a consciência do consumidor. Nossos estudos apontam que cerca de 25% dos brasileiros têm a percepção de que há um poder de transformar a partir da sociedade embutido no consumo. Esse nível de consciência leva as pessoas a agirem de uma maneira mais sustentável na compra, no uso e no descarte do que consomem.

E os outros dois?
Na parte da indústria é preciso criar produtos e serviços radicalmente diferentes dos que existem atualmente. E isso está começando a acontecer com a economia compartilhada e colaborativa. Finalmente, o último elemento é a necessidade de uma nova organização social.

“No Akatu, pegamos o lixo gerado no Brasil e fizemos um cálculo: ele ocuparia uma autoestrada do Oiapoque ao Chuí com 13 metros de altura”. (Crédito:MARTIN BERNETTI/AFP)

Como seria essa nova organização social?
O primeiro fator seria a redução do tempo de trabalho. O século 20 foi o de maior desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade, o de maior ganho de produtividade e também o período que marcou a entrada da mulher de maneira representativa no mercado de trabalho, o que aumentou em muito o número de empregados disponíveis para a indústria. Mesmo assim, mantemos as mesmas 40 horas semanais de trabalho estipuladas em 1840. Isso leva a um ganho exagerado do capital e uma perda do emprego pelos trabalhadores. É preciso haver uma mudança gradual, mas global da carga de trabalho.

Mais algum aspecto?
Sim. Depois da 2ª Guerra Mundial passamos a viver o consumo exagerado. As pessoas passaram a consumir o que não precisam, com o dinheiro que elas não têm para impressionar quem elas não gostam. O que aconteceu foi que departamentalizamos a vida: estudamos por 20 anos, trabalhamos por 40 anos, nos aposentamos e morremos. Passamos a trabalhar para consumir.

Como mudar isso?
Nesse aspecto a mudança precisa ser por mais equilíbrio no decorrer da vida. É preciso criar uma dinâmica em que as pessoas estudem, trabalhem, se desenvolvam espiritualmente, fortaleçam relacionamentos pessoais com famílias e amigos, e desenvolvam contatos produtivos com a comunidade durante toda a jornada. Dessa maneira o consumismo deixaria de ser esse elemento central na vida das pessoas.

Quais os efeitos desse consumismo desenfreado?
Um deles está relacionado à questão emocional. Sem tempo para nutrir relações de qualidade, as pessoas se deprimem e passam a ver no consumo um ato para se sentir melhor. O outro é a quantidade de resíduos gerados. No Akatu, pegamos o volume de lixo produzido por brasileiros e fizemos um cálculo: ele ocuparia uma autoestrada do Oiapoque ao Chuí em uma muralha de 13 metros de altura. Além do lixo, isso significa desperdício de alimentos, de água, de carbono…

Frear o consumo e reduzir horas de trabalho significaria alterar dois pilares nos quais se baseiam o atual modelo econômico. Qual o impacto dessas mudanças em economias emergentes como a do Brasil?
É muito difícil responder essa pergunta porque estes estudos não foram feitos. Mas já existem direções de como seria essa nova organização. Durante a pandemia, por exemplo, cerca de 40% da população trabalhou de casa, o que possibilitou uma reorganização da vida familiar de uma maneira inédita e sem a perda da produtividade.

Nessa economia sustentável deveria haver outro índice de medição da riqueza de um país que não fosse o PIB, por exemplo?
Sem dúvida. O crescimento econômico hoje é afetado positivamente por fatos extremamente negativos. Para dar um exemplo: quanto mais automóveis se produz, maior o impacto negativo no meio ambiente… mas o PIB cresce. O mesmo acontece com o petróleo. Essa medida é ineficiente na economia sustentável. O Butão é um caso que mostra que é possível se pensar diferente. Lá, os fatores relacionados ao indivíduo, como desenvolvimento pessoal, são privilegiados e se vive muito menos em função do consumo.

Se o crescimento dos países está intimamente ligado a indústrias poluentes, como será possível se fazer cumprir as metas de redução da temperatura global conforme estabelecido no Acordo de Paris?
Não será possível ser sustentável enquanto o poder econômico estiver na mão da insustentabilidade. Esse é um grande desafio para avanços de políticas públicas, como o Acordo de Paris. Para mudar o cenário é preciso que a sociedade civil se organize e que demande mudanças de governos rumo a posições mais sustentáveis.

Quem seria, então, o grande propulsor da construção de uma economia mais sustentável: cidadãos, empresas ou governo?
Será o conjunto dos atores. O governo é fundamental no processo, mas ele só agirá em resposta a uma pressão da sociedade civil. Ainda que isso já esteja acontecendo, o ritmo é muito menor do que o planeta demanda. Estudos do Akatu mostram que 73% dos brasileiros dizem que gostariam de reduzir seu impacto sobre o meio ambiente e 70% afirmam que já estão fazendo tudo o que é possível para isso. É claro que não estão fazendo. Continuamos andando de carro, consumindo barbaridades. É preciso mostrar para os cidadãos o que é possível fazer em termos de consumo e de economia circular. Esse papel de educação é da mídia, de empresas e sobretudo do governo.

“Enquanto diversos países estão criando políticas ativas para privilegiar veículos elétricos e produtos mais sustentáveis, nós não temos nada disso”. (Crédito:Istock)

Falando em governo, 2022 é ano de eleições. O que cobrar dos candidatos nessa pauta?
Os pontos mais sensíveis são a desigualdade e a fome. É preciso cobrar um plano de governo que contemple políticas sociais emancipatórias, que permitam o cidadão se desenvolver independentemente do governo. Isso não significa que não haverá políticas remediadoras: se têm pessoas passando fome é preciso socorrê-las, mas elas devem acontecer ao lado das emancipatórias em educação, saúde, empreendedorismo. Outro ponto importante é o meio ambiente por meio da cobrança de projetos que olhem para os recursos naturais do Brasil como uma riqueza. E finalmente olhar para ações de fortalecimento da cultura. Desmontada pelo governo atual, assim como as políticas ambientais, a cultura é essencial para o desenvolvimento das pessoas e da sociedade.

O senhor acredita que será possível reverter o desmanche ambiental e cultural promovido pelo atual governo?
Acho possível. O quadro eleitoral está indefinido. Os dois candidatos hoje na liderança, Lula e Jair Bolsonaro, têm altas taxas de rejeição. Então existe a possibilidade do surgimento de outra via que seja alinhada com essas condições e que tenha capacidade de articulação política para fazer diferente do que foi feito nos últimos governos. Também acho que existe um espaço imenso para o Brasil desenvolver a inovação favorecendo a indústria que passa por um momento que ainda não é de desindustrialização, mas é difícil.

Como na indústria automotiva com algumas montadoras fechando operações no Brasil?
O Brasil está na contramão do mundo. Enquanto diversos países estão criando políticas ativas para privilegiar veículos elétricos e produtos mais sustentáveis, nós não temos nada disso. E olha que o Brasil, ao contrário de outros, conseguiria adotar veículos elétricos usando uma matriz de energia limpa. Afinal, apesar dos erros estratégicos dos últimos 20 anos, nossa fonte energética primária é a hidráulica.

Se o modelo de consumo não mudar, qual será a consequência para o planeta?
É preciso mudar o modelo de consumo e de produção. Se isso não acontecer, voltamos para o problema do início da nossa conversa: estamos consumindo 70% a mais do que a Terra é capaz de renovar. A consequência será falta de água, calor intenso, terras inférteis, um mundo que estará coberto por lixo.