Não há para onde correr. Na rede pública de saúde, o cenário é de caos. Pacientes nos corredores, falta de vagas, a necessidade de instalação de hospitais de campanha e a difícil escolha sobre quais pacientes vão ocupar os leitos disponíveis. O colapso atingiu em cheio também os hospitais privados, igualmente afetados pela má gestão de Jair Bolsonaro no combate à Covid-19. As redes particulares sentiram o impacto financeiro provocado pelo adiamento de cirurgias eletivas desde o início da pandemia. As perdas beiram os R$ 12 bilhões. E a queda na receita só não foi maior por ter sido neutralizada pelo alto custo do paciente de Covid.

O reflexo da falta de uma política central de combate à doença e de estímulo a medidas de prevenção gera efeito em cadeia: mais pessoas contaminadas, mais necessidade de leitos e de medicamentos, mais mortes. O cenário dramático da crise nos hospitais privados foi evidenciado pelos pedidos feitos ao Sistema Único de Saúde (SUS) de vagas de UTI para seus pacientes. A última atualização da plataforma Monitora Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que, no dia 29 de março, 25 estados estavam em alerta crítico de ocupação de leitos de UTI. Amazonas e Roraima foram os únicos em alerta médio, um grau abaixo.

25 estados estão em alerta crítico de ocupação de leitos de uti, segundo monitor da fiocruz

Para um País que lidera o ranking mundial de mortes diárias, onde a média móvel de casos ultrapassa a marca de 75 mil por dia e apenas 2,28% da população foram imu-nizados com as duas doses da vacina, as perspectivas são desoladoras. Pesquisa do Sindicato dos Hospitais, Clínicas, Laboratórios e Demais Estabelecimentos de Saúde do Estado de São Paulo (SindHosp), feita com 81 hospitais paulistas entre 23 e 26 de março, mostra que 89% precisaram aumentar o número de leitos de UTI-Covid nos últimos 10 dias (leia na página 38). Também revela que 76% das unidades de saúde privadas estão com taxa de ocupação de leitos de UTI entre 91% e 100%, sendo que 17% dos hospitais estão com índice acima de 100%.

Para Francisco Balestrin, presidente do SindHosp, o prejuízo dos hospitais em relação a procedimentos eletivos atinge cerca de 10% do faturamento das unidades de saúde particulares. “A queda no volume de cirurgias foi determinante para isso e afetou diretamente na receita dos hospitais. O que equilibrou é que a receita média do paciente Covid é cerca de 30% superior aos demais e o tempo de permanência em UTI é quase o triplo.” O faturamento dos hospitais brasileiros é da ordem de R$ 120 bilhões, com fontes de receita das operadoras, dos pacientes particulares e do SUS.

Segundo o dirigente, a linha de crédito de R$ 2 bilhões liberada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no ano passado aos hospitais privados com faturamento anual acima de R$ 300 milhões não atendeu à necessidade. “É muito difícil hospital com faturamento deste tamanho. Se atendeu 50 hospitais foi muito”, afirmou Balestrin. Levantamento de 2019 da Federação Brasileira de Hospitais (FBH) contalilizou a existência de 4.267 hospitais privados no Brasil. Deles, 57% são entidades com fins lucrativos e 43% são santas casas e instituições filantrópicas. O estado de São Paulo lidera, com 859 unidades de saúde, seguida por Minas Gerais, com 543.

ANTECIPAÇÃO A Prevent Senior afirmou investir R$ 15 milhões em testes PCR para Covid-19 em 90% de seus 530 mil clientes. (Crédito:Divulgação)

Presidente do Instituto Coalizão Saúde, o médico Claudio Lottenberg, que também preside o Conselho da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein, entende que a má condução da política de saúde amplificou a crise sanitária e a superlotação. “Não houve uma liderança que conseguisse construir um cenário de união. Ao invés de terem dado espaço para técnicos, deram a políticos”, afirmou. Segundo ele, “o preço está sendo um bando de remendos em algo que poderia ser mais estruturado.”

No Hospital Sírio-Libanês, há uma lista de espera de pelo menos 30 pacientes de outras cidades e estados para serem transferidos. O problema não se resume a leitos, mas abrange toda a infraestrutura, incluindo mão de obra para garantir o atendimento médico. Na terça-feira (30), a taxa de ocupação de leitos era de 87%. “É necessário preparar pessoas. De novembro para cá, contratamos mais 700 profissionais e seguimos ampliando”, disse o diretor-geral do Sírio, Paulo Chapchap.

Antes da pandemia, o hospital realizava entre 70 e 80 cirurgias eletivas diariamente. Hoje, esse número gira em torno de 25. “Diminuiu para um terço porque a gente só está fazendo o que é absolutamente necessário. Os casos mais críticos continuam a ser tratados e os adiáveis podem esperar por algumas semanas”, afirmou Chapchap. A receita do Sírio de 2020, segundo o executivo, foi cerca de 10% menor que a de 2019, quando fechou com R$ 2,27 bilhões.

Claudio Belli

“Não houve uma liderança que conseguiu construir um cenário de união. Ao invés de técnicos, deram espaço a políticos” Cláudio Lottenberg presidente do instituto coalizão saúde.

PARALISAÇÃO Para garantir que os poucos leitos de UTI disponíveis sejam reservados a pacientes da Covid-19, entidades do setor de saúde têm defendido a suspensão de cirurgias eletivas. O presidente da Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge), Reinaldo de Camargo Scheibe, apoia a paralisação das operações não urgentes em até 60 dias. “Estamos numa guerra. Há falta de medicamentos, mão de obra, estrutura. Os planos de saúde da Abramge ampliaram 2 mil leitos no ano passado. Isso signfica mais gastos de material, com aumento de custos”, disse. “Precisa ser feito só os atendimentos necessários. Tudo que for possível deve ser postergado. Não dá para fazer agora cirurgia estética”, afirmou. Para Lottenberg, essa interrupção pode afetar a sustentabilidade financeira dos hospitais privados. “Não é tão simples imaginar que se mostrem viáveis somente com pacientes Covid”, disse. “Tem que pensar bem, porque pode haver internados por um período longo e a estrutura do hospital pode não suportar.”

A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) defende uma análise mais criteriosa, e não a interrupção direta, e a dilatação dos prazos para aprovação das cirurgias. Para a diretora-executiva da FenaSaúde, Vera Valente, é uma decisão que passa totalmente pela equipe de saúde. “No ano passado, houve redução de eletivas por decisão médica e de pacientes, em um adiamento responsável. No fim do ano, aconteceu a retomada desses processos, com demanda até maior do que em 2019”, disse. “Esse retorno está relacionado à necessidade de garantir essas cirurgias e, com isso, assegurar o faturamento. E o julgamento é do médico. A operadora não pode interferir.” Em 2019, o faturamento do setor de saúde suplementar no Brasil, segundo a FenaSaúde, alcançou R$ 207,6 bilhões. De acordo com o Observatório 2020 da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), 89,91% da receita dos hospitais associados vieram de recursos administrados pelas operadoras de planos de saúde. O resultado do ano ainda não foi fechado.

A operadora Prevent Senior, que no início da pandemia enfrentou desgaste por causa do grande número de casos nos hospitais da rede, investiu R$ 15 milhões para realização de testes do tipo PCR em cerca de 90% dos 530 mil beneficiários do plano de saúde. Segundo o diretor-executivo, Pedro Benedito Batista Júnior, o objetivo é diminuir a contaminação entre pacientes e familiares, e gastos na operação. “A gente enxerga a possibilidade de ter a informação antes de a pessoa evoluir com sintomas. Isso ajuda até a diminuir custos de tratamentos, já que 80% das internações estão entre 50 e 74 anos”, disse. As análises começaram no dia 18, em cinco postos (três na capital paulista, um em Santos e outro no Rio de Janeiro). Até segunda-feira (29), tinham sido realizados 29.046 testes, com 629 resultados positivos (o que representa 2,16%).

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“Estamos numa guerra. Há falta de medicamentos, estrutura, mão de obra. Tudo que for preciso deve ser postergado. Não dá para fazer agora cirurgia estética” Reinaldo Scheibe presidente da abramge.

Com a ampliação de leitos na rede privada, surgiu outro problema: o baixo estoque de medicamentos dos hospitais, principalmente kits de intubação. Lottenberg criticou a decisão recente do Ministério da Saúde em realizar requisição administrativa – na prática é um confisco, de medicamentos da indústria farmacêutica para a rede pública. “Não só não resolve o que não está com suprimentos adequados, como inviabiliza o que está funcionando corretamente.”

Para Francisco Balestrin, do SindHosp, há somente um caminho para o governo Jair Bolsonaro minimizar a enorme desorganização na saúde criada por ele próprio: “Basta não atrapalhar e deixar que aqueles que têm bom senso trabalhem”. Um bom começo.