Criar uma rede de fornecimento que ajuste a oferta do produtor rural à queda de demanda durante o isolamento social é um dos desafios para manter viva a cadeia do agronegócio brasileiro.

Em 2019, o agronegócio representou 21,4% do PIB brasileiro. Uma safra recorde de grãos projetada para 2020 poderia garantir que as atividades ligadas ao campo mantivessem a liderança na geração de riquezas e na balança de exportações do País. Aí veio o coronavírus, que obrigou o mundo a adotar um inédito isolamento social. Garantir que as pessoas continuem se alimentando em meio à quarentena é um desafio global – e que está todos os dias à mesa do secretário de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Gustavo Octaviano Diniz Junqueira, 47. Nascido em Orlândia (SP), formado em Administração pela Faap e com pós-graduação na Universidade do Arizona, ele é integrante da Câmara de Commodities da B3 e presidiu a Sociedade Rural Brasileira de 2014 a 2017. Nesta entrevista, fala sobre os riscos da Covid-19 sobre a cadeia de produção e distribuição de alimentos.

ISTOÉ DINHEIRO – O isolamento social decretado pelo governo de São Paulo para prevenir o contágio pelo coronavírus parece afetar menos as atividades do agronegócio, em comparação com indústria, comércio e serviços. Essa percepção é correta?
Gustavo Junqueira – É correta em termos. Porque o agro está presente no dia a dia das pessoas de muitas maneiras – e em geral elas não se dão conta. Então vamos para onde está o impacto maior. Quando a gente tem os restaurantes e bares fechados, nós paramos uma parte importante da cadeia de negócio dos pequenos produtores e de toda a rede que fornece frutas, legumes e verduras (FLV) para esses clientes. Não é verdade que todo mundo deixou de comer salada e passou a comer só macarrão. Houve um aumento significativo na venda desses produtos nos supermercados. No entanto existe uma segmentação do mercado em que produtores se especializaram no fornecimento para determinados clientes: restaurantes premium, empresas de catering para companhias aéreas, cozinhas industriais para funcionários de escritório. Todas essas atividades estão suspensas, com alguns trabalhando em home office, outros parados. Isso levou à paralisia de uma cadeia importante de fornecimento. Esses produtores não têm cadastro em supermercados, pois são negócios diferentes.

Com o fechamento temporário de bares, restaurantes e lanchonetes, que só podem funcionar por entrega ou retirada, a tendência é que muitos estabelecimentos nem sequer sobrevivam. Além do desemprego direto no setor, qual o risco de uma quebra na cadeia de distribuição?
Neste momento há uma preocupação maior com a dinâmica de distribuição, que em São Paulo envolve o Ceagesp. Aquilo precisa ser gerenciado sob uma ótica de higiene: menos caminhões descarregando e muito menos consumidores se abastecendo. Isso trava uma rede importante de fornecimento. Da mesma forma, há riscos em atividades como exportação de frutas (para o exterior ou mesmo para outros estados brasileiros), que usam muito as barrigas dos aviões. Com menos voos, essa logística é prejudicada. Essa dinâmica de distribuição, que era nacional e internacional, passa agora a enxergar o mercado local. Os players têm de se readequar a essa mecânica. E isso será assim, mesmo depois que os restaurantes voltarem a funcionar.

Por quê?
A causa da crise é a saúde. Mesmo que você levante a quarentena, as pessoas não voltarão ao restaurante. A mudança de hábito será permanente. O que a gente tem olhado é como criar uma rede de demanda e fornecimento capaz de equilibrar o que o produtor oferece para atender a um consumo menor. Não seria o momento de fazer uma prateleira do pequeno produtor nos supermercados? Essa é uma proposta que temos discutido com a associação dos supermercados e está caminhando.

“Não dá é para as pessoas irem à feira como uma atividade de entretenimento. A orientação é ‘fique em casa’. Precisa ir à feira? Vai lá, compra o tomate e volta” (Crédito:Divulgação)

Alguma outra ideia nesse sentido?
A utilização das empresas de delivery. A Rappi contratou 10 mil motoristas de carro. Eles estão diversificando o negócio para competir não só com a pizzaria e sim atuar como um intermediário que retira alimentos em uma ponta e leva para a outra. Outra ação é na parte financeira: prover crédito para que esses produtores consigam estocar aquilo que for possível. Eu tenho falado com a ministra Tereza Cristina (Agricultura) para que o governo federal via BNDES e Banco do Brasil disponibilize novas linhas. No âmbito estadual, estamos discutindo novas linhas através do Fundo de Expansão da Agricultura Paulista (Feap) e Desenvolve SP.

Como essas linhas serão aplicadas?
Quando o restaurante deixa de comprar, os produtores precisam jogar fora os itens mais perecíveis. O que ele vai fazer depois? Plantar mais? Em muitos casos ele não só vai ficar sem mercado como sem capital. Então não podemos estimular o plantio se não há consumo. Mas não podemos deixar que ele morra. A atenção, seja nossa ou do governo federal, é manter esse produtor vivo. Se não, na hora que o restaurante voltar e fizer o pedido para aquele fornecedor tradicional ele não estará mais lá.

Existe risco de desabastecimento?
Não. O risco é de perda de dinheiro. Eu estive no centro de distribuição do Pão de Açúcar. Eles recebiam, normalmente, de 180 a 190 carretas por dia. Na semana passada, receberam entre 250 e 350. Quase que dobraram a capacidade de absorção. Ou seja, nós temos eficiência na produção e na distribuição. O cosumo se adaptou. Produto existe. O que pode haver é uma exaustão de capital de giro, e aí precisa entrar com o dinheiro. Desabastecimento só ocorrerá se houver rupturas. Se a indústria química não fornecer embalagem para frango, pode ser que falte na prateleira, mesmo havendo frango na granja.

Alguma área dessa cadeia está paralisada?
O sistema é complexo. O porto de Santos precisa continar operando para receber fertilizantes e outros insumos químicos usados no agronegócio. O pecuarista precisa vacinar o gado contra a aftosa, em maio. Na indústria de alimentos entra a questão da saúde: as pessoas podem ficar doentes na linha de produção e isso levar a uma queda no volume. Hoje operamos em alta performance. Se houver um problema,
a performance será média. Se os caminhoneiros ficarem com medo – ou doentes – pode faltar transporte…

Falando em saúde, sua pasta publicou uma resolução que estabelece boas práticas em varejões, sacolões e feiras livres. Elas estão sendo adotadas?
O foco é a aglomeração, não a atividade. Se é possível executar o mesmo serviço com menos gente, mais espaçamento entre as pessoas e regras de higiene melhores, vamos manter aberto. Isso é bom para o produtor, para o comerciante e para o cliente que precisa se abastecer. O que não dá é para as pessoas irem à feira como uma atividade de entretenimento. A orientação é “fique em casa”. Precisa ir à feira? Vai lá, compra o tomate e volta para casa. Não pode comer ali, ficar tocando os alimentos. E o feirante não pode gritar para atrair cliente. Recomendamos colocar uma linha no chão mantendo distância de um metro da banca. Nós fomos verificar o cumprimento dessas normas em uma feira no Jabaquara (zona sul da capital paulista). Alguns respeitavam, outros ainda não. Havia idosos, tanto feirantes quanto consumidores. As pessoas vão ter que se conscientizar. Não é levantando a quarentena que o vírus vai sumir. Ele está aí. Não existe risco zero. O que existe é o entendimento do risco e a gestão do risco. São Paulo tem 800 feiras. Eu acho que elas devem ficar abertas. O estado recomenda um distanciamento social. As pessoas devem fiscalizar umas às outras.

E a questão da merenda escolar? Sem aulas, os alunos perdem uma refeição importante e os produtores deixam de abastecer escolas…
O governador definiu que uma parte do valor da merenda será entregue em dinheiro para as famílias que têm alunos na rede pública do estado. Mas isso não resolve o problema do produtor. Estamos estudando a possibilidade de criar uma cesta verde. Em vez de dar a refeição para as pessoas daremos os produtos para que elas cozinhem. A entrega será de cinco produtos, um quilo de cada, toda semana, para alunos da rede estadual de ensino. Estamos estruturando com o ministério para fazer isso nacionalmente.

O coronavírus tem algum impacto na produção de etanol?
O problema desse setor vai além do coronavírus. A atividade é importante para São Paulo, representa 50% do PIB do agro no estado. Com o preço do barril de petróleo a US$ 20, o etanol deixa de ser competitivo, porque o custo de produção é maior que isso. A Petrobras tem uma estratégia na direção de desligar as refinarias e importar mais gasolina – o que pode ter um efeito muito negativo no consumo de etanol. Com o isolamento causado pelo coranovírus, o consumo caiu ainda mais, porque as pessoas estão circulando menos. Com isso, as usinas direcionam a produção para o açúcar. O resultado é uma superprodução, que faz o preço do açúcar cair também. As empresas do setor já vinham com balanços alavancados e agora terão de buscar saídas.

“O setor de açúcar e etanol responde por 50% do PIB do agro em São Paulo. Com o barril de petróleo a US$ 20, o etanol deixa de ser competitivo”

Quanto do PIB do agronegócio brasileiro será afetado pela pandemia?
Ainda não temos uma previsão que possa computar todas as perdas. O Banco Central ainda projeta crescimento de 2,9% no agro mesmo com o coronavírus. É importante lembrar que em meio a tudo isso tivemos uma escalada do câmbio. Uma parte importante desse recurso vem da exportação. O dólar a R$ 5 é algo significativo, se imaginarmos que nas previsões anteriores ele era cotado a R$ 3,75, valor em que estava um ano atrás. Eu acredito que haverá crescimento, por ter sido um setor menos afetado.

O Brasil está finalizando uma safra recorde de quase 124 milhões de toneladas de soja. Porém, os preços estão em queda na comparação com o ano passado…
Mais ou menos. O que a gente tem ouvido é que a China voltou a comprar e a demanda chinesa será muito grande. Será uma safra boa e deverá ter bons preços.

A sustentabilidade do agronegócio é um fator que merece atenção cada vez maior do mundo todo. A liberação de novos agrotóxicos pelo governo federal gerou boicotes de redes de supermercados europeus. É possível conciliar o desenvolvimento do agro e a preservação ambiental?
Nós estamos vivendo aqui uma guerra de narrativas. O Brasil tem uma das agriculturas mais sustentáveis do planeta. O estado de São Paulo tem hoje 20% de vegetação nativa, mais do que a lei exige e muito mais do que muitos dos países que nos criticam. Mas esse não é o ponto. O ponto é que nós temos que melhorar a nossa narrativa. Mostrar para esse nosso cliente que nós somos uma boa opção. Nessa questão de agrotóxico, o que foi liberado no ano passado foram moléculas e fórmulas que só fizeram melhorar a qualidade dos químicos colocados na lavoura. Outra questão que se fala pouco é a reciclagem de embalagens de agrotóxico. O Brasil é o país que mais recicla – 98% do total que utiliza. Nós sempre temos o nosso solo coberto com matéria orgânica, o que faz com que haja uma relação positiva em termos de sequestro de carbono. Precisamos mostrar isso ao mundo.