Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu”. A frase é atribuída ao monarca francês Luís XIV (1638-1715), o Rei Sol, também apelidado de O Grande. O homem que construiu o suntuoso palácio de Versalhes e cujo reinado de 72 anos sobreviveu a duas gerações de descendentes (seu bisneto foi quem o sucedeu no trono) acreditava que o poder real tinha origem divina. Pensar assim poderia fazer sentido nos séculos 17 e 18, ainda mais para quem herdou a coroa da França aos 5 anos de idade. O regime absolutista que o colocou no poder não conhecia eleições. A Revolução Francesa, iniciada em 1789, decapitou o rei e a rainha (entre muitos outros aristocratas e religiosos), aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e instituiu uma democracia baseada em três ideais: liberdade, igualdade e fraternidade. Ao colocar as três palavras como anátema da nova nação francesa, o povo quis deixar claro que esses eram valores inalienáveis. Confundir governo e Estado podia ser plausível até então, mas deixou de ser na marra. Exceto quando a democracia não é respeitada.

O recente episódio envolvendo a retaliação de Bolsonaro a dirigentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que autorizaram a vacinação de crianças de 5 a 11 anos contra a Covid-19 comprova que o presidente da República pensa que ele é o Estado. Bolsonaro declarou publicamente que queria os nomes dos responsáveis pela autorização. Bastou para que agentes públicos passassem a receber ameaças. Elas foram documentadas e serviram de base para a Anvisa a solicitar não apenas uma investigação das ocorrências como proteção policial aos servidores e a seus familiares. O pedido foi enviado à Polícia Federal e ao Ministério da Justiça.

Perseguir, ameaçar e punir funcionários públicos que contrariam suas vontades não é algo que Bolsonaro tenha feito apenas de forma impulsiva, no calor do momento, ao ver seu negacionismo contrariado por quem defende a ciência contra a ignorância — ou a civilização contra a barbárie. É método. Vale relembrar alguns casos.

Em junho de 2019, o ex-ministro da Fazenda do governo Dilma Joaquim Levy pediu demissão da presidência do BNDES por ter sido ameaçado por Bolsonaro. Dois meses depois, incomodado com os relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que indicavam a participação de seu filho Flávio Bolsonaro no esquema das rachadinhas, o presidente não só destituiu Roberto Leonel do comando do órgão como transformou o Coaf em Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Na Polícia Federal, os alvos foram dois: Ricardo Saadi, afastado da superintendência em agosto de 2019, e Maurício Valeixo, demitido do cargo de diretor-geral da PF em abril de 2020. O episódio culminou na saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça. Houve demissões ainda no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que divulga dados sobre desmatamento na Amazônia questionados por Bolsonaro; na presidência da Petrobras, por reajustes dos combustíveis; no Banco do Brasil, pelo fechamento de agências; na Receita Federal, novamente devido ao envolvimento de Flávio Bolsonaro com as rachadinhas; no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no qual o presidente disse ter “ripado” funcionários que interditaram uma obra do empresário Luciano Hang, bolsonarista e dono da rede Havan. É inacreditável que o interesse de um único apoiador seja mais importante para o presidente do que a preservação do patrimônio histórico e artístico do País.

Ao pensar como o Rei Sol, confundindo seu governo (e a si próprio) com o Estado, Bolsonaro afronta a democracia de várias formas. A mais evidente é pelo autoritarismo. Quem não compactua de seu credo não pode servir à população. É demitido. A segunda é por agir como Donald Trump nos Estados Unidos. Ao não reconhecer sua derrota para o democrata Joe Biden, Trump encorajou seguidores a invadirem o Congresso Nacional na tentativa de impedir que o presidente eleito fosse diplomado. Não é preciso esperar as eleições para ver que algo semelhante já ocorre no Brasil. Assim como os servidores da Anvisa foram ameaçados ao aprovar a vacina para crianças, o prédio da Editora Três, que publica a DINHEIRO, já foi alvo de um ataque após a publicação de uma reportagem criticando o negacionismo de Bolsonaro.

A liberdade de expressão não é apenas uma garantia constitucional dos brasileiros. Ela é um pilar da democracia, sem o qual não há justiça, não há direitos civis, não há Estado. O que resta é um lunático acreditando ser o Estado.

Celso Masson é diretor de núcleo da DINHEIRO