A mentira, a truculência e o desrespeito à inteligência alheia são características indissociáveis do perfil sociopata de Jair Bolsonaro. Para quem estiver pensando que há algum exagero na referência à sociopatia, aqui vai uma definição usada pelo Hospital Israelita Albert Einstein: “Quem tem transtorno de personalidade antissocial costuma mentir, infringir leis, agir impulsivamente e desconsiderar sua própria segurança ou a segurança dos outros”. É exatamente o que faz o presidente. O tempo todo. Na última semana, contudo, ele extrapolou os limites do que é aceitável para qualquer pessoa que tenha o poder de decidir o futuro de uma nação inteira.

Em uma sequência de pronunciamentos tão lamentáveis quanto repugnantes, o capitão reformado afrontou a ciência e a diplomacia com o mesmo grau de ignorância e com os argumentos infundados com os quais sempre ataca quem não comunga suas crenças.

Primeiro, usou indevidamente a triste notícia da morte de um voluntário no protocolo de pesquisas da CoronaVac (a vacina de origem chinesa atualmente em testes pelo Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo) para se autoproclamar vitorioso em uma disputa imaginária com o adversário político João Doria. “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, afirmou, como se houvesse algum motivo para comemorar os mais de 160 mil óbitos registrados no Brasil em decorrência da Covid-19.

O desrespeito à vida, contudo, não parou por aí. “Todos nós vamos morrer um dia. Aqui todo mundo vai morrer”, disse, antes de dar seu vaticínio sobre o que parece considerar o grande flagelo brasileiro: “Tem que deixar de ser um país de maricas”. A frase é tão imbecil que nem mereceria comentários, mas eles vieram de todas as frentes possíveis e com o mesmo tom de revolta.

E, comprovando que não há limite para sua inadequação à Presidência, aproveitou a ocasião para iniciar uma refrega com seu mais novo oponente na arena internacional, o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden. “Assistimos há pouco aí um grande candidato à chefia de estado dizer que se eu não apagar o fogo da Amazônia ele levanta barreiras comerciais contra o Brasil. E como é que nós podemos fazer frente a tudo isso? Apenas a diplomacia não dá. Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”, afirmou, antes de concluir: “Não estou preocupado com a minha biografia – se é que eu tenho biografia”.

Talvez ele não esteja preocupado mesmo, mas nós devemos nos preocupar. Ainda que a ameaça de usar pólvora para um eventual confronto com a maior potência bélica do planeta não tenha consequências mais graves do que gerar memes na internet, o desalinhamento do Brasil com os Estados Unidos preocupa, por várias razões. Mesmo com o tanto que bajulou Donald Trump ao longo de quase dois anos, Bolsonaro não colheu nenhum benefício prático. Pelo contrário, o governo americano elevou as tarifas sobre o aço e o alumínio brasileiros e não cumpriu a promessa de apoiar o ingresso do Brasil na OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, da qual fazem parte os países mais ricos. Apesar das concessões brasileiras (caso da cessão da base de lançamentos aeroespaciais em Alcântara e a isenção de vistos para turistas norte-americanos), o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, defendeu o ingresso da Argentina, e não do Brasil, no grupo de 36 países que compõem a organização. O Itamaraty anunciou que abriria mão do status de país em desenvolvimento nas negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio) para obter o acesso à OCDE. Agora, com Trump fora da presidência, integrantes do governo brasileiro já dão por certo que o apoio dos EUA deverá esfriar.

Se isso acontecer, seguramente não será porque Biden decidiu retaliar o Brasil devido às desastrosas políticas ambientais adotadas por Bolsonaro, que tem orgulho de ser chamado de capitão motosserra. Se o rompimento do democrata com o Brasil se confirmar será porque ninguém em sã consciência deseja qualquer aliança com o presidente brasileiro. Que, aliás, não se dignou a parabenizar o futuro ocupante da Casa Branca e nem a reconhecer que ele venceu as eleições. Afinal, quem não sabe se tem uma biografia não deve mesmo se preocupar com o que os outros pensam. Nem quando o outro é o presidente dos Estados Unidos.

Celso Masson é diretor de núcleo da DINHEIRO