Como já se tornou uma praxe no governo de Jair Bolsonaro, a mais recente crise começou com uma das “lives” do presidente, na noite da quinta-feira (18). Ele comentou de maneira bastante crítica os reajuste dos preços dos combustíveis anunciados pela Petrobras. Naquele dia, a estatal havia informado elevações de 10,2% no preço da gasolina e de 15,1% no do diesel. Aumentos assim causam impactos pesados, imediatos e inescapáveis para os empresários e trabalhadores do transporte rodoviário de carga, um dos pilares eleitorais do presidente. Bolsonaro, claro, não deixou dúvidas sobre o que pensava. “Teve um aumento, no meu entender aqui, eu vou criticar, um aumento fora da curva da Petrobras (…). É o quarto reajuste do ano. A bronca vem sempre para cima de mim, só que a Petrobras tem autonomia”, afirmou.

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Para contrabalançar o impacto, ele anunciou uma isenção temporária dos impostos federais que incidem sobre os combustíveis. “A partir de 1º de março também não haverá qualquer imposto federal no diesel por dois meses”, disse ele. “Nestes dois meses nós vamos estudar uma maneira definitiva de buscar zerar este imposto no diesel, até para ajudar a contrabalancear este aumento, no meu entender, excessivo da Petrobras.” Não é novidade que a retórica presidencial é inflamada e frequentemente descolada dos fatos. Porém, fiel a seu estilo de falar dez vezes antes de pensar, Bolsonaro foi além de comentar o reajuste. Prometeu a seguir que haveria mudanças no comando da petroleira.“Eu não posso interferir nem iria interferir na Petrobras. Se bem que alguma coisa vai acontecer na Petrobras nos próximos dias”, disse. Fato confirmado na sexta-feira (19), com o anúncio da substituição de Roberto Castello Branco pelo general Joaquim Silva e Luna, que presidia Itaipu.

No Brasil, 68% de todas as cargas são transportadas por caminhões, quase todos movidos a diesel. Em um cenário assim, os preços do diesel são tão inflamáveis quanto o próprio fluido. Governantes sabem disso e têm à mão uma solução eficaz no curto prazo para aumentos incontroláveis do petróleo. Como a União é a controladora da Petrobras, estatal que detém na prática o monopólio da prospecção, extração e refino do petróleo, é fácil para Brasília usar a petroleira como um amortecedor para os choques de preços. Ao atrasar os reajustes, o governo reduz o impacto nos índices de inflação e nos preços da comida. Com sorte, se a alta internacional dos preços for breve, tudo se ajeita e a vida segue. Sem sorte, ocorre o que ocorreu durante a gestão de Graça Forster, que presidiu a Petrobras no governo Dilma Rousseff. Durante quase três anos a estatal segurou na marra os preços dos combustíveis nas refinarias. Além da corrupção desmascarada durante as investigações da Lava Jato, essa política tornou a estatal uma fábrica de prejuízos — e a petroleira mais endividada do mundo. Algo danoso a seus acionistas, também conhecidos como povo brasileiro.

Fernando Frazão / Andre Dusek

Com o impeachment de Dilma, durante o governo Temer o comando da Petrobras ficou a cargo de Pedro Parente e, posteriormente, de Ivan Monteiro, ex-vice-presidente de finanças do Banco do Brasil. Parente fez a lição de casa: vendeu participações, cancelou obras caríssimas e desnecessárias, revisou custos e cortou gastos. Mais do que isso, ele estabeleceu uma política clara de preços para os combustíveis. Simplificando, os preços iriam seguir as oscilações do mercado internacional do petróleo do tipo Brent, mas de maneira mais atenuada. Três números contam como tudo isso repercutiu sobre a empresa. No fim de 2014, início do segundo mandato de Dilma, a Petrobras valia R$ 127 bilhões. No início de 2016, quando já se falava no impeachment, essa cifra havia caído 37%, para R$ 79 bilhões. No fim de 2018, antes da posse de Bolsonaro, o valor de mercado avançara para R$ 316 bilhões, alta de exatos 300%. E as cotações continuaram subindo nos primeiros meses do governo do capitão, para um máximo de R$ 413 bilhões em outubro de 2019, devido à gestão aplaudida de Roberto Castello Branco, que manteve e aprofundou as correções de rota adotadas na gestão anterior. Já praticamente fora do comando, coube a ele divulgar o resultado de 2020 na quarta-feira (25). A Petrobras lucrou R$ 59,8 bilhões no quarto trimestre. Ela reverteu os prejuízos do ano passado, acumulou um ganho de R$ 7,1 bilhões e vai distribuir R$ 10,3 bilhões em dividendos aos acionistas.

Ao interferir na Petrobras e não descartar outras ingerências caso algo “preocupante surja”, Bolsonaro feriu, mais uma vez, o principal mandamento de um dos empresários mais respeitados da história brasileira: Irineu Evangelista de Sousa, também conhecido como Visconde de Mauá. Entre os mais importantes industriais brasileiros no século 19, ele esteve por trás da já tardia revolução industrial em São Paulo e Rio de Janeiro. Já deputado federal pelo Rio Grande do Sul, em 1870, o Visconde foi categórico sobre uma boa gestão para a economia. “O melhor programa econômico de governo é não atrapalhar aqueles que produzem, investem, poupam, empregam, trabalham e consomem”. Ficar afastado do que desconhece nãwo é do feitio do Messias. Insatisfeito com as tensões de caminhoneiros e taxistas com relação à escalada do preço do combustível, ele mais uma vez agiu sem pensar.

No Ministério da Economia a decisão do presidente caiu como uma bomba, de efeito moral. Afastado de sua posição protagonista na condução da economia, Paulo Guedes pouco ficou neutro. Interlocutores do ministro garantiram que houve estranheza no recebimento da informação, mas que ela não gerou indignação de Guedes como em outros tempos. Como era de se esperar, as declarações de Bolsonaro fizeram desabar as cotações das estatais na bolsa, com os investidores temendo uma volta aos tempos intervencionistas de Dilma Rousseff. Até a quarta-feira (24), a soma da perda do valor de mercado das três estatais — Petrobras, Eletrobrás e Banco do Brasil — superava R$ 75 bilhões.

Para Raphael Sodré Cittadino, Presidente do Instituto de Estudos Legislativos e Políticas Públicas (IELP) e professor de Direito do IDP a decisão de Bolsonaro reflete a contradição que o governo prega. “Há um choque entre a visão liberal e uma visão mais desenvolvimentista. No caso da Petrobras, venceu uma postura mais intervencionista”, afirmou. Na avaliação do acadêmico, havia no mercado uma sensação de estabilidade com relação à política de preços na Petrobras. “Quem analisa a política nacional sabia que em algum momento o presidente romperia com a linha liberal ‘pura’.” Gustavo de Godoy Lefone, coordenador do departamento de Direito Tributário do BNZ Advogados, tem uma visão um pouco diferente. Para ele, ao substituir o presidente da estatal, Bolsonaro não quis ferir diretamente suas relações com a agenda liberal, mas passar aos motoristas a mensagem de que “algo está sendo feito”. “Diante do cenário econômico e questões sociais que estão na iminência de acontecer, como, por exemplo, nova greve dos caminhoneiros, a interferência do presidente já era esperada”, afirmou. Para ele, a única medida intervencionista tomada por Bolsonaro nesse momento que repercute diretamente no preço do combustível é a isenção temporária do PIS e Cofins “e não a substituição da direção da estatal.” Se a intenção era agradar os caminhoneiros, o resultado foi desvalorizar a petroleira e afugentar investidores estrangeiros.

CHOQUE DE CAPITALISMO Estação de distribuição de eletricidade em Santa Catarina. Em suas idas e vindas intervencionistas, Bolsonaro prometeu “meter a mão” no setor elétrico, o que fez disparar as ações da Eletrobrás. (Crédito:Divulgação)

Se a questão do preço dos combustíveis parece ser a pedra no sapato do presidente neste momento, já é bom avisar que a solução não é só tirar o calçado e chacoalhar o pé. Todos os presidentes brasileiros passaram por isso. E ao que tudo indica Bolsonaro parece não ter pensado em soluções criativas. Ao encaminhar para o Congresso o PLC 1621, que trata da unificação do ICMS cobrado nos Estados para fins de combustível, ele percorre uma estrada velha. “Vamos ser honestos. Temos mais do mesmo. A sugestão é antiga e sem retoque”, afirmou Rodrigo Rigo Pinheiro, sócio coordenador da área tributária do Leite, Tosto e Barros Advogados. Atualmente o nos Estados, a alíquota do ICMS varia de 12% a 34% para o diesel, entre 25% e 34% para a gasolina; e 13% a 32% para o etanol.

Para Halley Henares Neto, presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat) há espaço para diminuição de tributos. A iniciativa de promover um projeto de Lei que modifica a cobrança se torna válida por colocar em pé de igualdade os custos de operação para o litro do combustível que é exportado (sem incidência de impostos) com o que é distribuído dentro do Brasil. “É uma medida válida que ajudará os consumidores na ponta e não interfere na gestão da empresa”, disse.

PRIVATIZAÇÕES Não é a primeira vez que Bolsonaro precisa passar mensagens descoladas de suas ações. Depois interferir na Petrobras, o presidente tentou afagar o mercado mostrando seu comprometimento com a agenda liberal do ministro Paulo Guedes. Na terça-feira (23) publicou no Diário Oficial da União uma lista de empreendimentos que foram qualificados na reunião do conselho do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) no início de dezembro. É a segunda etapa das oito fases necessárias para que o programa saia do papel. Ainda faltam a contratação de estudos de viabilidade, as audiências públicas, a aprovação do Tribunal de Contas da União, o edital e, só então, o leilão. A lista tem mais de 30 empreendimentos e inclui aeroportos como Congonhas e Santos Dumont e a desestatização da Codeba (Companhia Docas da Bahia).

Para o historiador político e professor do núcleo de gestão de políticas públicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Evandro Costa Leme, Bolsonaro tenta vender gato por lebre. “Fazer concessões de aeroportos a Dilma fazia. E ela não era de esquerda? Conceder aeroporto não torna um presidente liberal. Só aumenta a arrecadação na marra”, disse. Na avaliação do acadêmico, as provas de fogo do liberalismo envolvem privatizar a Eletrobras, e os Correios. “Mas para isso Bolsonaro irá pisar no calo dos fisiologistas”, disse. No caso da estatal de energia, o presidente levou pessoalmente ao Congresso uma Medida Provisória para tratar do andamento da desestatização. “Para mim não passou de encenação. Se o governo quisesse avançar, usaria sua base para aprovar o projeto enviado no ano passado, ou ainda o que Temer enviou em 2018”, disse. Segundo o secretário de Desestatização do ministério da Economia, Diogo Mac Cord, o envio da MP não foi encenação. Segundo ele, se fosse mantida a estratégia do projeto de lei, a privatização da Eletrobras ficaria para 2023. “A MP nos permite colocar a bola em campo imediatamente”, afirmou. Na quarta-feira, em outro gesto simbólico para reverter a perda de apoio entre investidores, Bolsonaro foi pessoalmente ao Congresso, mais uma vez, entregar o projeto de lei para o novo marco postal, que viabiliza a venda dos Correios. A celeridade dos processos sinaliza que o ministério da Economia agiu rápido para suavizar a má impressão criada no mercado e assim tentar reduzir os prejuízos para o País.

A ingerência de Bolsonaro na Petrobras, apesar de todos os efeitos negativos na empresa, sobre os investidores e, principalmente, na imagem do Brasil no exterior, deixará um legado: o desmascaramento de um ditador estatista travestido de neoliberal. No final das contas, os eleitores poderão chegar à conclusão de que Bolsonaro é mais esquerdista, bolivariano e incentivador no inchaço estatal do que os últimos governos petistas que foram inquilinos do Palácio do Planalto. O resultado virá com o tempo. Como disse um candidato várias vezes durante a eleição presidencial de 2018, citando o Evangelho Segundo João, capítulo 8, versículo 32: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.