No prefácio do livro “Nós, Mulheres”, recém publicado por aqui, a jornalista espanhola Rosa Montero lembra que os relatos da História, escritos quase que exclusivamente por homens, sempre deram às figuras femininas um papel acessório na humanidade. “Mas ao mesmo tempo – alerta ela – (esses relatos) nos conferem uma capacidade de causar prejuízo muito acima de nossa posição secundária.” Como no mito de Eva: de uma costela emprestada de Adão surge a mulher dissimulada e irresponsável cuja existência prejudica o homem (quando arrasta o companheiro para o pecado) e ainda gera tragédias incontornáveis (tanto que estamos privados das delícias do Paraíso para sempre).

Essa visão torta do poder feminino como algo próximo da loucura, consolidada durante séculos, ajudou a alimentar a lógica igualmente torta que insiste em transferir às mulheres a culpa pelos abusos e violência que sofrem. Não é incomum ouvir que aquela que apanhou mereceu. Ou que a mulher estuprada provocou seu estuprador. E se foi assediada, facilitou ou não entendeu a brincadeira (na versão piorada, o elogio). Nos casos de assédio, aliás, a saída mais fácil é sempre grudar a pecha de louca naquela que reclama. É o salvo-conduto do assediador.

Por isso mesmo, entre os muitos detalhes que compõem o caso de assédio denunciado por Dani Calabresa, um é particularmente cruel: a quantidade de vezes – e de pessoas – que tentaram fazer com que a atriz parecesse a louca da história. Como o diretor acusado que, na presença de outros colegas de trabalho, debochou do seu pedido para que parasse de tentar beijá-la à força – espantadíssimo porque ela surtou. Ou a diretora da Globo, deslocada tardiamente para contornar a crise entre o chefe e a subordinada, que sugeriu a solução caridosa de pagar uma terapia à atriz  – e esquecer o resto.

Dani Calabresa não é, nem estava louca. Teve crises de ansiedade, perdeu a concentração no dia a dia e precisou ser medicada no momento mais delicado dos dois anos que o assédio persistiu porque estava, isso sim, sozinha e desamparada – sendo boicotada na carreira, inclusive. Até o momento em que, vendo que havia outras colegas de trabalho sendo importunadas da mesma maneira e pelo mesmo sujeito, tomou a iniciativa de contratar uma advogada com traquejo no tema e partir para o ataque.

Ainda assim, teve de bater em diversas portas da empresa e repetir sua história muitas vezes para começar a ser ouvida como alguém que fala sério e não está inventando coisas ou tentando destruir a vida ilibada de um homem honesto. O tempo que sua denúncia levou passeando pelos corredores da Globo, sem que nada acontecesse, é inacreditável.

O diretor, finalmente afastado das funções, já avisou que vai à Justiça porque “eu e ela sabemos que aquilo não aconteceu”. Fica claro que um dos dois está mentindo, mas até agora ele só conseguiu se escorar no sistema interno que claramente o protegeu (o que não é incomum, também), e na lógica torta de fazer a mulher que o denuncia parecer louca. Já Dani Calabresa tem testemunhas, tem outras vítimas dispostas a contar o que passaram e o exemplo de um caso parecido que acabou mal, mas para o outro lado: Harvey Weinstein, o todo-poderoso do cinema que inspirou o movimento #metoo entre atrizes de Hollywood, está amargando 23 anos de cadeia.

Vale lembrar aqui: os números variam de pesquisa para pesquisa mas mostram, com bastante coerência, que pelo menos metade das mulheres já sofreu assédio moral ou sexual nos seus locais de trabalho. As empresas, solidariamente responsáveis por tudo o que acontece dentro dos seus muros e/ou com os seus integrantes, têm um bocado ainda para fazer e aprender quando se trata de criar ambientes de zero tolerância a abusos de toda ordem – e o caso da Globo é exemplar também para mostrar que seu tempo já se esgotou.

Porque quanto mais vozes se levantarem contra assediadores e quem os protege, e mais mulheres corajosas como Dani Calabresa surgirem, mais difícil vai ser acreditar que a loucura é o nosso pecado original.