O homem que assume em maio a presidência da mais alta corte da Justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal, é um enigma. Marco Aurélio de Mello, vice-presidente do STJ, pensou em ser engenheiro civil, já trabalhou em uma fazenda, exercita a concentração cortando grama, é avesso a eventos sociais e não foge de uma boa polêmica. Suas várias facetas também são refletidas no trabalho. Os votos do ministro oscilaram pelos dois extremos da faixa de classificação ideológica desde que ele deixou, há 10 anos, o Tribunal Superior do Trabalho para assumir uma das 11 vagas do Supremo por indicação do primo ? o então presidente Fernando Collor. Só no ano passado, ele emperrou a privatização do Banespa, votou contra a quebra de sigilo bancário pela Receita Federal, livrou da prisão preventiva o ex-banqueiro Salvatore Cacciola e cogitou liberar o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto. Chegou até a omitir opiniões opostas no mesmo caso: em dezembro do ano passado, irritou o governo ao votar contra a manutenção do teto para os gastos com pessoal nos Três Poderes na Lei de Responsabilidade Fiscal. Depois, mudou de idéia e votou a favor. Com isso, desempatou o escore e deu o voto que o governo precisava para a aprovação final da lei.

Não por outra razão, a ascensão do ministro fez com que o Palácio do Planalto se preparasse para a ?nova fase? do Supremo, como definem alguns advogados. A lógica é simples: se Marco Aurélio já deu dores de cabeça como um dos membros do Tribunal, imagine o que poderá fazer quando assumir a presidência que lhe dará o poder de definir a pauta do Tribunal e de cassar liminares concedidas pelos outros 10 colegas. Como não pode evitar a posse ? Marco Aurélio assume por ser o mais antigo membro da casa ?, o governo pilotou duas manobras. A primeira foi a edição, em novembro passado, da Medida Provisória 1984, que amplia as possibilidades de o Poder Público questionar as decisões do Supremo. A outra é o adiamento da posse de Marco Aurélio para 2002. A mudança seria possível com a aprovação no Congresso do projeto do senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE), que pretende igualar os mandatos dos presidentes de tribunais ao ano fiscal, no caso 1º de janeiro a 31 de dezembro. Como Marco Aurélio assumiria apenas em maio, um outro ministro ficaria interinamente no cargo até a posse do ministro, no primeiro dia do próximo ano.

A reação do ministro sobre o adiamento? ?Eu concordo com o projeto.? Uma reação tipicamente marcoaureliana, sempre surpreendente.

Mesmo assumindo a presidência da instância máxima da lei no Brasil, Marco Aurélio não decidirá isoladamente as questões. O Supremo atua em forma de colegiado. De qualquer forma, o governo tem motivos de sobra para se preocupar. O ministro, um carioca de 54 anos que começou a carreira em 1975 no Ministério Público do Trabalho, tem posições de deixar a equipe econômica de cabelo em pé. É, por exemplo, francamente favorável à correção de contas congeladas nos planos econômicos, como é o caso do FGTS, e da correção monetária da tabela do Imposto de Renda ? negada até hoje pelo governo. ?No Brasil, modifica-se a regra no meio do jogo. O contribuinte acaba sendo prejudicado, principalmente o de baixa renda.? Do lado da arrecadação, é contra a cobrança de determinados impostos que não são ?harmônicos?, que geram controvérsia. É o caso do chamado ICMS por dentro, cobrado duas vezes na venda de determinado produto. ?Não me imaginem tentando salvar impostos?, afirma, categórico. Afável, o ministro faz questão de atender todos que o procuram, de advogados a cidadãos comuns que ligam ou mandam e-mails. Na semana passada, em meio das férias aproveitadas com a família na Barra da Tijuca, no Rio, ouviu pelo celular a reclamação de um cidadão comum sobre o pagamento de um precatório. ?É um direito. Procure saber o que aconteceu com seu advogado?, respondeu, com paciência, enquanto olhava o mar. Sorrisos e gentilezas não escondem o lado centralizador, metódico e acidez do seu lado crítico. Ele, por exemplo, é contra a idéia do governo de multar os procuradores da República por denúncias não comprovadas e critica a edição de Medidas Provisórias, um dos instrumentos mais usados pelo governo Fernando Henrique. Para ele, as MPs são instrumentos usados em casos de urgência e não deveriam ser reeditadas a cada 30 dias. ?Não precisamos de novas regras jurídicas?, diz.

Marco Aurélio não gosta de ser rotulado de imprevisível. Diz que toma decisões que sejam justas com o indivíduo. Uma linha de raciocínio, diz ele, trazida dos tempos em que trabalhou como juiz do Tribunal Regional e do Tribunal Superior do Trabalho, entre 1978 a 1990. ?O juiz não deve se importar com a capa do processo nem temer a repercussão. Há uma tendência a se automatizar a lei. O direito tem que ser artesanal?, filosofa. O futuro presidente do Supremo, por exemplo, é favorável à liberdade do cidadão. Seguindo essa filosofia, liberou o ex-banqueiro Salvatore Cacciola, hoje foragido em Roma. Não foi um fato isolado: dos 69 pedidos de habeas corpus apresentados no STF em julho do ano passado, 42 chegaram ao STF no período em que Marco Aurélio despachava como presidente. Tão diferentes quanto suas idéias são as pessoas que têm elogiado Marco Aurélio. ?Ele vai dar mais visibilidade e transparência para o Judiciário?, diz o advogado criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira. ?O ministro inovou de forma importante e positiva a jurisprudência. Merece elogios principalmente no caso do Banespa?, diz o procurador Luiz Francisco de Souza. Para o ministro, a situação é inesperada. Em 1966, fez vestibular para entrar na faculdade de engenharia civil. Desistiu e ficou durante dois anos trabalhando em uma fazenda no interior do Rio. Lá, criou porcos e gado nelore. No campo, veio a idéia de seguir a carreira do pai, Plínio Affonso Mello, tio de Fernando Collor. Dois anos depois, fez um curso e entrou finalmente para a Universidade Federal do Rio de Janeiro. ?Imaginava que seria um advogado do Banco do Brasil ou que trabalharia na iniciativa privada.? Foi na Universidade que começou a namorar sua mulher, Sandra Santis, juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e presidente do Tribunal do Juri em Brasília. Como o marido, Sandra já se envolveu em questões polêmicas. Ela presidiu o juri que julgou os rapazes que atearam fogo no índio Pataxó. Outro membro polêmico de sua família, o ex-presidente Fernando Collor. O ministro não consegue esconder o embaraço ao lembrar do parente. ?Claro, temos o parentesco. Foi o Fernando que me nomeou para o cargo no Supremo?, lembra, com uma pontuação de voz que lembrou vagamente a do ex-presidente.

Fora da agitação dos tribunais, Marco Aurélio e Sandra têm uma vida típica de gente do campo. Vivem em um sítio em Brasília, onde andam a cavalo e criam uma vaca que produz sete litros de leite por dia, usados por Sandra para fazer queijos. Lá, Marco Aurélio relaxa com um expediente pouco comum: cortando grama em um pequeno trator. Dentro da casa, em um escritório amplo, o juiz trabalha ao som de Chico Buarque, Caetano Veloso e Mozart. É lá, na ampla mesa com tampo de mármore, que o futuro presidente do Supremo vai tomar decisões a partir de maio.