Um fato: o masculino território das finanças vem abrindo aos poucos suas portas para a entrada de mulheres. Elas já representam 26% dos investidores em bolsa, conforme dados da B3. A dura vida real: todos os demais indicadores ainda mostram uma triste desigualdade. Pesquisa da consultoria Oliver Wyman indica que quase 60% dos formandos das universidades são do gênero feminino, mas apenas 6% das mulheres chegam ao maior posto dentro de uma instituição financeira. E o que acontece neste segmento específico se repete por todo o mundo corporativo. No Brasil, o cenário é ainda mais desolador. O País ocupa a 92ª posição entre 152 países no relatório Global Gender Gap Report 2020, publicado pelo Fórum Econômico Mundial.

6% das mulheres conseguem chegar ao maior posto dentro de uma instituição financeira.

Segundo a líder do escritório da Oliver Wyman no Brasil, Ana Carla Abrão, existem barreiras invisíveis que tornam o funil mais fino quando se trata de mulheres. Ela cita o estudo Invisible Visible, concluído pela empresa neste ano. Feito com 3 mil companhias americanas, mostra que 47% da força de trabalho é formada por mulheres. Mas apenas 25% dos cargos de liderança são preenchidos por elas. E apenas 12% ocupam posições de chefe de operações ou de vendas, áreas tradicionalmente vinculadas a centros de resultado. Entre as barreiras estão os pontos distintos valorizados por homens e mulheres nos traços fundamentais para liderança. Homens classificam objetividade como a principal característica de liderança. Já as mulheres tendem a identificar na capacidade de envolvimento do time o traço mais importante. E como mulheres são avaliadas e promovidas majoritariamente por homens, a dissonância se evidencia.

ANA CARLA ABRÃO Barreiras invisíveis tornam o funil mais fino para ascensão das mulheres, mostra um estudo feito pela consultoria Oliver Wyman no Brasil. (Crédito:Claudio Gatti )

“Para deixar de ser invisíveis é preciso que alguém patrocine e aposte nas mulheres”, disse Ana Carla. Ela mesma diz que apenas agora, aos 50 anos, se deu conta que enfrentou mais barreiras do que imaginava, mesmo tendo comandado a área de controle de risco do banco Itaú e ter assumido a Secretaria da Fazenda de Goiás. “Sempre estive em postos de liderança, mas hoje lembro de quantas reuniões em que meus subordinados homens recebiam atenção e eu era ignorada.”

Esse tipo de distorção é mais evidente e grave nos salários. Foi o que aconteceu com Ana Paula Pisaneschi. Formada em Comércio Exterior, com MBA em Global Business, ela entrou no setor financeiro com 21 anos. Assumia cada vez mais responsabilidade, mas se incomodava porque com mais de cinco anos de empresa ganhava menos que homens em cargos similares. “Cheguei a ser promovida, mas não tive aumento de salário. Com o tempo percebi que nunca seria melhor remunerada que um homem e resolvi empreender”, disse. Há dez anos ela criou a Vertoue Gestão de Risco. Fundou em seguida a Tróchia, empresa de gestão de ativos e, recentemente, criou a Uffa, plataforma de serviços financeiros especializada em recuperação de créditos que já passaram por várias etapas de cobrança sem solução. Sua iniciativa mais recente deve ter sua primeira rodada de investimentos até o fim do mês. Mas mesmo mudando de lado do balcão as dificuldades e o preconceito permanecem. Ela percebeu isso na dificuldade para captar recursos no mercado. “Até as perguntas durante uma apresentação são diferentes. Porque para uma mulher a questão central sempre são os riscos e quando é um homem são as oportunidades.”

Claudio Gatti

“Em uma reunião com 19 homens meu chefe teve que explicar que eu era a responsável pelo projeto” Auziane Moraes, líder de open banking da Dock.

O empreendedorismo também foi a alternativa de Graziela Suman, fundadora do escritório de assessoria Veedha Investimentos. Aos 17 anos, quando saiu de sua cidade natal, Botucatu, no interior paulista, em direção a São Paulo, seu objetivo era muito claro: ganhar o próprio dinheiro. O primeiro emprego foi em um grande banco, setor em que trabalhou durante 24 anos. “Passei por todo tipo de pressão por resultados e até desrespeito. Mas aceitei porque essa era a regra do jogo”, afirmou. “Até que um dia tive um AVC hemorrágico e parei para pensar no que estava fazendo com a minha vida.” Há quatro anos decidiu empreender. Hoje a Veedha Investimentos já tem, mais de 4 mil clientes, 50 assessores e escritórios em quatro cidades, com R$ 4 bilhões sob sua assessoria.

Graziela traz outro ponto decisivo. O resultado. Nos bancos, por exemplo, mulheres já são quase 60% dos gerentes de agência, mas apenas 25% alcançam cargo de superintendes e menos de 6% chegam a postos de CEOs. “É preciso ultrapassar essas barreiras para alcançar a equidade de gênero”, disse. E acrescenta um argumento decisivo: “Já está constatado que a diversidade nas empresas, mais do que questão social, é uma vantagem competitiva, uma vez que companhias com maior diversidade tem um resultado financeiro 15% superior em relação à média das concorrentes”.

Marcele Lemos é um dos casos raros a que se refere Graziela. Chegou ao posto de CEO. Formada em administração de empresas, ela credita sua trajetória a um perfil de proatividade. Começou a trabalhar numa seguradora em que a francesa Coface era acionista com 24% de participação. Por cinco anos se aprofundou na área de seguros para exportação e se tornou gerente de risco. Em 2008, a francesa assumiu o controle com a compra de 75%. “Acabei virando o braço direito do então presidente Joel Paillot”, disse. Em 2011 ele foi chamado para assumir a direção global de risco da empresa na França e acabou indicando Marcele para o cargo que deixava. Aos 34 anos ela assumia o comando da filial brasileira.

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“Cheguei a ser promovida sem aumento. Percebi que não seria melhor remunerada que um homem e resolvi empreender” Ana Paula Pisaneschi, fundadora de empresas de recuperação de crédito.

Nos dez anos de sua liderança, diz que a única vez em que ficou incomodada com preconceito foi durante uma entrevista quando um repórter disse que ela tinha muita sorte de assumir um posto tão importante. “Aí eu lembrei das incontáveis noites que passei trabalhando e nos desafios que tive de enfrentar para alguém me dizer que foi ‘sorte’”. E como o sucesso acompanha quem trabalha, Marcele Lemos acaba de ser convidada para assumir em maio a posição de chefe operacional (COO) na regional norte-americana. “Uma empresa só consegue ser diferente se as pessoas pensarem de formas diferentes. E a diversidade está no centro disso tudo.”

DIVERSIDADE E FORMAÇÃO Laura Constantini, fundadora da Astella Investimentos, conta que percebeu muitas diferenças de tratamento ao longo dos 20 anos trabalhando em grandes bancos. Mas foi com sua filha que começou a entender alguns dos motivos que levavam a isso. “Desde pequenas as mulheres não são incentivadas, por exemplo, para carreiras em ciências exatas”, afirmou. “Eu espero ser um exemplo para que minha filha faça o que quiser.” A formação em áreas de alta demanda – a chamada carreira Stem (sigla em inglês para as áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática) – foi decisivo para Auziane Moraes. Nascida em Belém, ela se formou em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Pará e está entrando no mercado financeiro pela tecnologia. Aos 25 anos já lidera a área de operações da Dock, empresa que oferece ferramentas para empresas montarem seu próprio banco. Ela diz que nunca enfrentou tantas barreiras, mas sabe que isso só ocorreu também porque tinha uma chefe mulher. “Ela foi minha referência e mentora, o que me facilitou o caminho”, afirmou. Mesmo assim, não escapou de entrar em uma sala para uma reunião onde das 20 pessoas era a única mulher. “Imagine uma mulher jovem, com traços indígenas, vinda de fora do eixo Rio-São Paulo entrando na sala? Meu chefe teve de falar que eu era responsável pelo projeto, porque acharam que eu era a secretária dele”, disse. Hoje ela faz parte do comitê da ABFintech que está presente nas discussões com o Banco Central a respeito do Open Banking.

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