O ano fiscal 2020 do iFood terminou no último 31 de março. E recordar os últimos 12 meses de trabalho da maior foodtech no Brasil significa mesclar sentimentos de satisfação e apreensão. Por causa do isolamento social, a empresa viu os pedidos quase triplicarem. Saíram de 22 milhões, no começo de 2020, e atingiram o pico de 60 milhões, em março deste ano. Motivo para comemorar, mas também para lamentar, diante da crise vivida pelos restaurantes – líderes do setor falam em até 40% de endereços fechados –, em razão das restrições de funcionamento. E, para evitar que as estatísticas ganhem contornos ainda mais dramáticos, a plataforma mostra o apetite para os negócios com a criação de uma fintech que já liberou R$ 200 milhões em empréstimos a 7 mil restaurantes parceiros. “Nosso foco, apesar de ser um banco, não é lucrar um monte”, disse à DINHEIRO Fabrício Bloisi, presidente do iFood. “Queremos ajudar os restaurantes a sobreviver, investir mais e a crescer mais rápido.”

Em seis meses de operação, o “banco dos restaurantes” atingiu a marca de 100 mil clientes entre os 270 mil estabelecimentos cadastrados na plataforma. A ideia é chegar a R$ 500 milhões emprestados até o fim do ano. Em outra estratégia “para garantir a saúde do ecossistema”, a empresa vai antecipar R$ 12 bilhões em pagamentos aos parceiros – R$ 7,4 bilhões já circulam desde abril de 2020 e o restante será liberado nos próximos três meses. “Nossa cabeça é de BigTech, de grandes empresas de tecnologia que entram em novos segmentos com inovação, mudanças rápidas e investimentos, ajudando esses setores a amadurecer, crescer e melhorar os serviços.” Neste ano, o iFood deve investir R$ 800 milhões em inovação. A empresa detém pelo menos 65% do mercado, segundo a pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box.

EXPANSÃO O iFood já tem 160 mil entregadores em 1,2 mil cidades. A meta é ampliar esse batalhão para 250 mil pessoas. (Crédito:Tiago Queiroz)

Concorrente do iFood, o aplicativo de entrega Rappi, fundado na Colômbia em 2015 e em atuação no Brasil desde 2017, também diversificou as operações com a criação, em janeiro deste ano, do RappiBank, banco digital voltado aos participantes do ecossistema, sejam eles parceiros (restaurantes, farmácias, lojas ou supermercados) ou usuários finais, cadastrados ou não no aplicativo. A fintech ainda lançou uma linha de capital de giro para pessoas jurídicas chamada RappiBankPJ e, em maio, serão disponibilizados antecipação de recebíveis para pessoas jurídicas e o cartão de crédito (RappiCard) para as físicas. A empresa já investiu R$ 86 milhões nos restaurantes por meio de empréstimos e vai liberar um adicional de R$ 100 milhões ao longo de 2021.

Em 2020, o aplicativo teve crescimento de quase 50% no número de clientes que compraram em restaurantes cadastrados, e de aproximadamente 45% no total de pedidos. Para Fernando Vilela, diretor de Marketing da marca, o setor tem sido beneficiado pela indústria 4.0 com tecnologia, inovação, omnichannel e acesso a novos mercados. “Com a quantidade de informações disponíveis é possível ter uma leitura das necessidades do usuário e criar produtos inovadores”, disse Vilela.

Já o Uber Eats, outro player do segmento, foi beneficiado por parceria, ainda em 2020, com a fintech brasileira Ebanx. Os clientes podem pagar os pedidos na foodtech e as viagens no aplicativo Uber com Pix. A empresa também adotou, entre outras coisas, a redução de taxas e a antecipação diária e gratuita dos pagamentos para os estabelecimentos parceiros. “Essa é a melhor solução de adiantamento de recebíveis do mercado”, afirmou Rafael Pereira, executivo que comanda a divisão de restaurantes do Uber Eats. “Sabemos como o fluxo de caixa é importante e acreditamos que, ao repassar esses valores diariamente, ajudamos os empresários a tomar as melhores decisões financeiras para os seus negócios”, afirmou. A bandeira também assumiu o compromisso de, nos próximos meses, investir cerca de R$ 70 milhões em ações de marketing e promoções na plataforma com o objetivo de gerar demanda para os restaurantes cadastrados.

O presidente do iFood vê na inovação propiciada pelas grandes empresas, como “XP e Magazine Luiza, por exemplo”, a inspiração para o Brasil continuar a crescer. O fato de essas companhias abordarem assuntos como necessidade de impacto social, de apoiar o ecossistema e a sociedade, é visto como incentivo ao desenvolvimento. Nos últimos quatro meses, o iFood passou a discutir como contribuir mais com a sociedade, por meio de um movimento chamado Educação, Meio Ambiente e Inclusão. A foodtech assumiu o compromisso de levar conhecimento a 10 milhões de pessoas até 2025. Em parceria com o Sebrae nacional, por meio do movimento Compre do Pequeno, oferece cursos de desenvolvimento profissional a funcionários – e familiares – de restaurantes parceiros e orientações aos donos dos estabelecimentos.

EM PROTESTO Motofretistas têm se mobilizado para pedir melhores condições de trabalho. Seguro contra roubo e acidente é umas reivindicações. (Crédito:Alex Silva)

MOTO ELÉTRICA A grande inovação da empresa talvez esteja na decisão de se tornar também montadora de veículos. Por uma motivação ambiental. O iFood deu início ao plano de zerar a emissão de carbono, atualmente em 128 mil toneladas anuais. Para isso, em parceria com a Voltz, vai investir na construção de uma fábrica de motos elétricas no Brasil. A empresa já iniciou o projeto piloto com 30 motos sendo testadas pelos entregadores. Após esse período, a expectativa é alcançar 10 mil unidades no primeiro ano, com a meta de chegar a 100 mil até 2025. A foodtech vai desenvolver linha de crédito especial aos entregadores para a aquisição do veículo.

O presidente da empresa acredita que, em dez anos, as empresas vão ser medidas não só pelo lucro e pelo crescimento apresentado, mas pelo impacto positivo que geram. “Espero que isso não seja uma roda que dura um ano e, sim, algo que cresça por outros dez anos e vire o novo normal.” A preocupação de Bloisi faz sentido, afinal, o iFood tem diariamente 160 mil entregadores cruzando ruas e avenidas de 1,2 mil cidades pelo País, a maioria deles em motos, o que agrava a poluição. “Queremos ser muito agressivos nisso. Temos que dar exemplo, migrar a frota para os modelos elétricos e fazer uma campanha para reduzir a emissão de carbono nas motos convencionais.”

Apesar das iniciativas em prol da educação e do meio ambiente, o iFood, assim como outros aplicativos de entregas, é pressionado para dar o exemplo também em outros assuntos. Associações e sindicatos de motofretistas seguem na briga para que os entregadores tenham as reivindicações atendidas. Entre as principais, estão o aumento do valor pago por quilometragem e do valor mínimo por entrega, além de seguro e a possibilidade de acesso à seguridade social. Edgard da Silva, o Gringo, presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil, acusa as plataformas de entrega de terem inchado o quadro de colaboradores na pandemia e não se preocuparem com a pouca experiência de muitos cadastrados na condução das motos, longas jornadas, condições dos veículos, além de queda na taxa recebida devido à alta procura por vagas. Mas é o risco à segurança que mais preocupa. Nos primeiros nove meses de 2020, 89 motoqueiros morreram no estado de São Paulo, 48% a mais em relação ao mesmo período de 2019 (60). Os acidentes com vítimas também aumentaram, de 5,7 mil (2019) para 8,2 mil (2020) no estado, segundo o Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito do Estado de São Paulo (Infosiga).

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“Saúde, bem-estar e sustentabilidade vieram para ficar. E o consumidor não abre mão desses valores” João dornellas presidente da Abia.

Há 20 anos na profissão, o Gringo afirmou que os entregadores de aplicativos já chegaram a ter vencimentos mensais mais altos, “na casa dos R$ 5 mil, R$ 6 mil mensais”, mas que a maioria recebe hoje, no máximo, R$ 2,5 mil. “Isso sem contar os gastos com combustível, alimentação, manutenção da moto. Sobra praticamente metade.” O valor das taxas, que variam de R$ 3,50 a R$ 6, em média, por entrega, é reajustado apenas em datas especiais, como o Dia das Mães, e também quando chove, já que há menos motoqueiros dispostos a trabalhar, pelo risco acentuado de acidentes. “Nas datas especiais, com a taxa de entrega mais alta, você vê os motoqueiros fazendo loucuras para realizar o máximo possível de viagens. É aí que acontecem os problemas.”

LEGISLAÇÃO Sem fugir do tema, o presidente do iFood afirmou que oito em cada dez entregadores dão notas 8, 9 ou 10 à foodtech, que tem o desafio de manter a segurança de quem trabalha, além de garantir a seguridade social. “Somos favoráveis à regulação que garanta melhores condições às pessoas. Só que o preço disso não pode ser travar ou matar a indústria”, disse. “A lei tem de ser modernizada. Inovação exige flexibilidade.” Bloisi destacou a intenção de criar regulação que garanta bons trabalhos e que o mercado continue crescendo. O iFood tem conversado com o governo para ter uma legislação que possibilite seguridade social e, ao mesmo tempo, flexibilidade, “o que o mundo chama de economia compartilhada, que é como está a maior parte dos entregadores hoje”. De acordo com o executivo, há a necessidade de entender que a inovação exige novas formas de geração de trabalho e de renda.

Enquanto a polêmica continua à espera da palavra final do governo, Bloisi vive a expectativa pelo aumento do ritmo de vacinação e o consequente relaxamento das medidas restritivas. O executivo acredita em outro aumento de 100% no número de pedidos em 2021, mas “ninguém sabe o que vai acontecer.” A empresa tem hoje 4 mil funcionários, a metade deles contratada durante a pandemia, e outros 1 mil devem ser admitidos nos próximos meses. O quadro de entregadores também deve subir e atingir pelo menos 250 mil.

Paulo Solmucci Júnior, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), é a voz da outra ponta desse ecossistema. Ele diz que o setor perdeu 300 mil empresas ao longo de 2020 e deve computar o fechamento de outras 35 mil nos primeiros quatro meses do ano – eram 1 milhão antes da crise de saúde. Para complicar, as empresas que sobreviveram estão descapitalizadas. “Cerca de 90% delas não conseguiu pagar integralmente a folha que venceu no começo de abril. Isso mostra uma total falta de liquidez que terá consequências muito duras, como, infelizmente, mais empresas fechando as portas e dificuldade na retomada.”

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“Sem as plataformas, teríamos vivido dias muito piores no setor e estaríamos muito mais desestruturados” Paulo solmucci jr. presidente da Abrasel.

SEM EMPREGO Com as empresas fechadas ou com restrições para trabalhar, o movimento caiu e, consequentemente, empregos foram perdidos. Ao menos 1,2 milhão de pessoas foram dispensadas em 2020 e outras 100 mil no primeiro quadrimestre de 2021. O faturamento caiu de R$ 300 bilhões, em 2019, para R$ 200 bilhões, no ano passado. De acordo com Solmucci, os aplicativos, como o iFood, foram fundamentais para o funcionamento de muitos bares e restaurantes. “Sem as plataformas, teríamos vivido dias muito piores e estaríamos muito mais desestruturados.” Para ele, ainda que o faturamento e a presença do delivery não tenham sido suficientes para evitar o prejuízo, elas mantiveram as empresas vivas. “Ajudaram a segurar os empregos.”

Para João Dornellas, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), as foodtechs mudaram o costume do consumidor, que aprendeu a pedir refeições e alimentos, além de realizar outras atividades por meio das plataformas digitais. “O desempenho do food service está diretamente relacionado à ocasião de consumo.” Dados da Abia mostram que o mercado cresceu 184,2% entre 2009 e 2019. Com o crescimento do delivery, a indústria de alimentos e bebidas também tem se transformado com iniciativas em frentes específicas junto aos operadores. “No futuro, as empresas que investirem seus esforços em serviços e produtos relacionados à nutrição conquistarão espaço importante no mercado”, disse Dornellas. “Saúde, bem-estar e sustentabilidade vieram para ficar. E o consumidor não abre mão desses valores.” O iFood, ao que parece, já se entregou à condução do movimento.

ENTREVISTA: fabrício Bloisi, presidente do ifood
“A pandemia drenou toda a Energia do país”

Claudio Gatti

Qual sua avaliação de como o ministério da Economia tem atuado para reduzir as adversidades provocadas pela pandemia?
O ministério tem ambições e intenções muito boas de melhorar a economia, de ter um viés liberal. E podemos fazer andar mais rápido. Infelizmente, os resultados foram muito piores do que planejavam. A pandemia drenou toda a energia do País. As propostas eram incríveis, eu vi, mas a verdade é que foi tudo para a pandemia. A gente não conseguiu crescer o que deveria. Infelizmente, um ano perdido para a economia.

E a questão das reformas administrativa e tributária que não saem do papel?
Acho que existe otimismo entre todos os empreendedores e empresários. Hoje, a Câmara e o Senado estão mais alinhados com o governo. E espera-se que essas reformas sejam feitas ao longo deste ano. O Brasil é tão travado na parte tributária que fica até difícil pagar imposto. O País tem de entender que é preciso a simplificação tributária, simplificação administrativa e segurança jurídica.

Alguns empresários defendem a manutenção do pagamento, por parte do governo, de um percentual do salário dos funcionários, a exemplo de 2020. Alegam dificuldade em manter os empregados diante da queda na arrecadação. O senhor é a favor dessa ajuda?
O caso do iFood, não é de demissões ou de reduções. Queremos ampliar e continuar crescendo, mas o setor de restaurantes está muito fragilizado. Muitos proprietários estão pensando se deveriam fechar o estabelecimento ou ‘Que tipo de apoio posso ter do governo?’. Acho que se houver espaço do governo, e espero que tenha, é importante para que a atividade possa continuar. O mesmo vale para o auxílio emergencial. Temos tanto desemprego e fome. É um momento que o governo precisa ajudar. O que também é preciso, em paralelo, é mais vacinação e distanciamento social, para que os números de contaminação e morte diminuam. Os auxílios são muito importantes, porque, caso contrário, teremos mais gente morrendo e o desemprego aumentando.

A concorrência incomoda?
Faz parte. E é bom. Somos líderes de mercado, e o motivo para isso são clientes felizes. O nosso tempo de entrega é de, em média, 27 minutos. Se você olhar o índice de satisfação dos clientes, o do iFood é muito maior. Os restaurantes preferem trabalhar com a gente. O nosso NPS (Net Promoter Score, grau de recomendação da empresa ou experiência de compra) é 70, 80. O NPS dos nossos concorrentes está na faixa de 30. Crescemos muito porque conseguimos oferecer um produto melhor, com mais inovação, com menos erro e mais rápido. Temos um nível de qualidade compatível com o dos melhores do mundo.

Quais os próximos projetos?
O nosso objetivo é continuar crescendo. E muito. A gente quer facilitar o modo como todo mundo consome vale-refeição no Brasil. E esperamos entrar em novos países também, mas não posso falar exatamente onde. É mais para daqui a um ano. Queremos ser líderes globais e vamos buscar isso.