Desde sua primeira mineração, em 2009, o bitcoin prometia ser uma inovação que merecia o adjetivo “disruptiva”. O conceito permanece revolucionário. Um ativo digital baseado em uma rede descentralizada, e que serve tanto para intermediar transações quanto como investimento e reserva de valor, pode reordenar toda a arquitetura financeira mundial.

O principal entrave para que isso tenha ocorrido, no entanto, está na essência do bitcoin e das demais 6,5 mil criptomoedas em circulação. Por serem nativos de redes conhecidas como blockchains e não estarem sujeitos a um ordenamento central, os criptoativos são diferentes entre si. Isso dificulta as transações entre eles. O ambiente é semelhante a uma cidade comercial durante a Idade Média. Os produtos à venda são disputados por interessados com centenas de moedas diferentes. Para conseguir fechar negócio, compradores e vendedores têm de recorrer a intermediários que elevam o custo das transações.

No que depender da Visa, isso vai mudar, e depressa. No fim de setembro, a principal empresa de tecnologia aplicada a pagamentos do mundo divulgou os planos do Universal Payment Channel (UPC). A intenção é que o UPC seja a central universal que permita intermediar as transações com esses ativos digitais. Em sua primeira fase, o UPC vai se dedicar apenas às moedas digitais emitidas pelos bancos centrais, conhecidas pela sigla CBDC, ou Central Bank Digital Currencies. Em um segundo momento, as demais moedas poderão ter suas transações facilitadas por meio desse sistema. “O UPC foi projetado para tornar mais fácil para as pessoas, as empresas e os governos fazerem transações com diferentes moedas digitais em diferentes blockchains”, disse a britânica Catherine Gu, principal executiva da Visa responsável pelo desenvolvimento do UPC.

Ao fazer isso, a Visa está, de certo modo, revivendo sua história. No fim dos anos 1960, os bancos americanos eram proibidos de operar além das fronteiras estaduais. Essas restrições não se aplicavam a cartões de crédito, então centenas de instituições financeiras se lançaram nisso. O resultado foi caótico. A ausência de controles unificados provocava prejuízos e tornava o sistema inoperante. Nesse momento, Dee Hock, um executivo ligado à filial do Bank of America em Seattle, se propôs a resolver o problema. Sua solução foi estabelecer alguns princípios comuns, como os prazos de pagamento, por exemplo. Sem isso, poucos comerciantes aceitariam os cartões e o produto não decolaria. Ao colocar um pouco de ordem no sistema sem ambicionar extinguir o caos, Hock criou o conceito de organização “caórdica”. Pouco tempo depois o Bank of America criaria uma empresa, a BankAmericard, que atualmente vale
US$ 494 bilhões e é conhecida como Visa.

De volta a 2021. Apesar de o valor de mercado e o volume diário de negócios com criptomoedas ser muito maior que as cifras da B3 (quadro à pág. 35), a ausência de um sistema unificado e seguro ainda impede que as criptomoedas sejam aceitas por todos os agentes econômicos. Isso não é um problema apenas para quem pretende transformar valores em tokens, nome dos ativos digitalizados por meio de blockchains. Também é um entrave para os bancos centrais ao redor do mundo, Brasil incluído, que vêm investindo pesado para criar suas próprias moedas digitais. O mais avançado nesse sentido é o Banco do Povo da China, autoridade monetária do país asiático. No fim de setembro, o governo chinês simplesmente colocou fora da lei todas as transações com criptomoedas, de modo a forçar a circulação do renminbi digital, que ele controla.

Segundo o diretor de novos negócios para o Brasil da empresa de transações com criptomoedas CoinPayment, Rubens Neinstein, o potencial de um sistema que integre tudo isso é imenso. “A Visa quer criar uma central que conecte as redes governamentais, para que a troca de moedas digitais seja fluida e transparente”, disse Neinstein. “De saída, isso reduz os custos nas transações internacionais entre pessoas.”

Pode parecer um mero detalhe. Porém, em estruturas tão grandes como o sistema internacional de remessas, um ganho mínimo de eficiência tem efeitos exponenciais. “Basta lembrar o que ocorreu com o comércio internacional com a implantação de contêineres”, disse o principal executivo do grupo Ripio no Brasil, Henrique Teixeira. Em meados dos anos 1950, a padronização do tamanho das embalagens reduziu o tempo e o trabalho para carregar e descarregar navios e caminhões. “Os custos menores permitiram ampliar o comércio em 700%”, disse Teixeira.

Ele disse acreditar que algo semelhante ocorra após a implantação de um sistema unificado de transação das criptomoedas. Ao terem de pagar menos pelas transações financeiras internacionais, empreendedores e consumidores terão mais renda para movimentar a economia. Um estudante americano interessado em aprender mandarim pode contratar um professor chinês a distância e não haverá problemas com o pagamento das aulas. E o comércio eletrônico é só uma faceta, os benefícios chegarão rapidamente à economia real. “O turista estrangeiro poderá comprar um pastel de feira no Brasil pagando em sua moeda local, sem ter de arcar com as várias tarifas e a arbitragem das taxas de câmbio”, disse Teixeira. “Quando se recorda que há cerca de 3 mil ativos digitais relevantes e esse número só tende a crescer, nós temos uma dimensão do impacto dessa iniciativa para a economia real.”

AMADURECIMENTO As corretoras de criptoativos, conhecidas como exchanges, avaliam positivamente a decisão. “A entrada de players institucionais como a Visa é importante”, disse o CEO da Mercado Bitcoin, Reinaldo Rabelo. “O UPC se assemelha ao que as exchanges já fazem, trocando criptoativos e fazendo liquidação com ativos digitais, o que melhora a usabilidade e torna o uso parecido com o do dinheiro comum.” Segundo o fundador da plataforma de marketing e vendas Wiboo, Pedro Alexandre, a entrada da Visa mostra que o mercado atingiu um nível de amadurecimento sem precedentes. A Wiboo desenvolveu uma criptomoeda, a WiBX, que permite premiar pequenos influenciadores digitais por fazerem engajamento dos seus posts. “É um boca a boca automatizado”, disse Alexandre.

Segundo o executivo, ainda que criptomoedas como bitcoin só devam entrar no UPC em um segundo momento, o mercado atingiu um novo patamar. “O cliente ir pagar um café e o atendente perguntar ‘débito, crédito ou cripto?’ é algo que vai acontecer muito antes do que nós imaginamos”, disse Alexandre.

ENTREVISTA: “O UPC tem o potencial de conectar diferentes redes de blockchain”
Catherine Gu executiva da visa responsável pela plataforma de pagamentos a ser lançada pela empresa.

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Principal executiva da Visa para moedas digitais de bancos centrais, as Central Bank Digital Currencies (CDBC), a britânica Catherine Gu está a cargo de desenvolver a nova “organização caórdica” que poderá uniformizar e ampliar de maneira exponencial as transações com criptomoedas. Ela falou com a DINHEIRO:

O Universal Payment Channel (UPC) tornará mais fácil para os bancos centrais fazerem com que pessoas e empresas usem suas moedas digitais?
Sim. Nós acreditamos que, para serem bem-sucedidas, as CBDCs devem proporcionar uma ótima experiência de consumo ao usuário e terem uma aceitação ampla no mercado. O UPC foi projetado para tornar mais fácil para as pessoas, as empresas e os governos fazerem transações com diferentes moedas digitais em diferentes blockchains. Nós esperamos que o UPC um dia torne os CBDCs atraentes para todos esses públicos. Estamos ansiosos para trabalhar com os bancos centrais, de modo a identificar os melhores usos para as CBDC e torna-los exequíveis por meio de tecnologias seguras, convenientes e confiáveis, que possam se integrar perfeitamente ao ecossistema de pagamentos existente.

A Visa nasceu da visão de Dee Hock e de sua organização “caórdica”. O UPC pode ser uma iniciativa semelhante?
Quando Dee Hock fundou a Visa, ele já imaginou criar o principal sistema do mundo para a troca de valor. No mundo de hoje, isso significa adaptar a rede Visa para acomodar novos fatores de forma de dinheiro. Hoje, estamos focados em conectar moedas digitais à nossa “rede de redes”. É uma estratégia projetada para agregar valor a todas as formas de movimentação de dinheiro, seja na rede Visa ou fora dela.
Como parte dessa estratégia, estivemos estudando os fundamentos do blockchain e publicando pesquisas sobre novos mecanismos para melhorar a escalabilidade, a interoperabilidade e a segurança das transações em moeda digital. Embora o UPC ainda exista apenas na teoria, estamos entusiasmados com as possibilidades. O UPC tem potencial para conectar diferentes redes de blockchain, estabelecendo canais de pagamento dedicados entre elas. Isso significa conectar redes CBDC entre países ou conectar redes CBDC com redes privadas aprovadas.

Como o UPC influenciará, no longo prazo, os preços e a liquidez das criptomoedas atualmente em circulação?
O que estamos compartilhando hoje é uma contribuição teórica para a comunidade global — não o lançamento de um produto. Portanto, é muito cedo para dizer que efeito, se houver, o UPC teria sobre os preços ou a liquidez.