Antes, um ponto: não querer nunca mais Bolsonaro e sua trupe não significa endossar cegamente a outra trupe. A priori. Mas num pau a pau, numa situação segundo-turno-de-existir, significa sim escolher qualquer outro lado. Segunda, terceira, quarta via… Isso colocado, vamos à referência abaixo.

“Ada JoAnn Taylor confessou o assassinato da mulher (X) em 1989 e por duas décadas acreditou ser culpada. Ela passou mais de 19 anos presa pelo crime, até ser perdoada. Foi uma das seis pessoas acusadas, cinco delas fizeram acordos com a promotoria confessando o assassinato em troca de penas menores. Em nenhum outro caso nos Estados Unidos memórias falsas de culpa duraram tanto tempo. Trata-se de maleabilidade da memória: uma noção implausível, inicialmente até colocada em dúvida, transforma-se numa crença arraigada que remodela o sentido de identidade. Eli Chesen, psiquiatra de Nebraska que avaliou Ada Taylor e os demais réus após sua libertação, me disse: ‘Eles ainda acreditam ter sangue nas mãos’ ”. Em suma, os condenados confessos não eram os culpados.

O sublime trecho acima é de Rachel Aviv e foi escrito na abertura de uma reportagem para a revista New Yorker (edição de 12 de junho de 2017 — e pode ser lida na íntegra no livro Os Piores Crimes da Revista New Yorker (2021, Editora Rua do Sabão).

Ok, mas o que isso tem a ver com uma revista de economia & negócios? De certa forma, tudo.

Assim como inocentes podem, depois de manipulações psicológicas incessantes, incorporar atos e culpas em situações das quais não eram responsáveis ou nem sequer participaram — os seis acusados do crime narrado na New Yorker foram inocentados duas décadas depois, via DNA, no que foi considerado “a maior absolvição envolvendo confissões falsas do sistema judicial dos EUA” —, o oposto também cabe: criamos uma história e a repetimos tantas vezes que nos inocentamos de nossos crimes. Quaisquer crimes. Horríveis ou banais. Legais, morais, profissionais ou técnicos.

É o caso deste governo. De sua cúpula inteira.

É evidente que um médico que já dirigiu uma organização classista e hoje ocupa a cadeira de ministro da Saúde tenta se convencer toda noite de que está do lado certo da história, mesmo estando invariavelmente do lado oposto da ciência. Igualmente vale para Paulo Guedes. “Este batia nas portas de Brasília para ser ministro desde os anos 90”, ouvi de um importante personagem do mundo empresarial e político brasileiro. De um ex-amigo do mago da offshore ouvi que ele foi a maior decepção e vira-casaca da história. “Jogou no lixo sua formação de liberal em nome de ficar no cargo.” É provável que Guedes durma acreditando mesmo no que diz, acreditando que somente não colocou em prática sua agenda liberal porque parlamentares não deixaram, a imprensa não deixou, as condições adversas não deixaram. Deve acreditar petreamente que se derem mais quatro anos ele conseguirá.

Assim como é provável que Eduardo Villas Bôas acredite ter servido ao país com sua tuitada ameaçando o STF, postagem que mudou o curso das eleições de 2018. Mesmo estado de consciência de Sergio Moro, que deve acreditar que “o fim justifica os meios” e jogou no lixo a basilar imparcialidade que deveria (d-e-v-e-r-i-a) predominar nas cortes brasileiras. Vale pros caras do ministério da Educação, do Desenvolvimento Regional, da Infraestrutura, do Meio Ambiente, para a Damares… Como disse à DINHEIRO a economista Elena Landau, “não existe ministro no governo Bolsonaro que não seja bolsonarista; quem está neste governo é negacionista, é terraplanista, é antivax, é antidemocrático”. Ponto.

Uma legião que inclui boa parte dos parlamentares, muitos de oposição. Poucas vezes o Congresso brasileio foi tomado por gente tão tacanha — e olha que a competição é intensa — como nesta legislatura. Irresponsáveis fiscais, incapazes de fazer vingar uma agenda real de reformas, famélicos por verbas de orçamentos secretos, fundões partidários e toda sorte de aberração. Acredito mesmo que boa parte deles se convença de que é estadista.

É preciso impedir que essa gente vença, porque dizem que a “história é escrita pelos vencedores”. A frase creditada a Winston Churchill na verdade foi dita, de outra forma, pelo alto oficial nazista Hermann Göring em seu julgamento em Nuremberg no fim da Segunda Guerra. “O vencedor sempre será o juiz e o vencido, o acusado”, afirmou o alemão. Mesmo que o grosso desse pessoal que acompanha Bolsonaro acredite toda noite em suas boas intenções (se elas existirem), é preciso impedir que eles se tornem o juiz do que acontece com o Brasil. Ou os acusados (e culpados) seremos nós, os demais.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.