A demolição de 20 sobrados de uma antiga vila em fevereiro tem gerado críticas entre moradores do Tatuapé, bairro da zona leste da cidade de São Paulo. O conjunto reúne outros 40 imóveis, cujos inquilinos afirmam ter recebido uma carta para deixar o local em 30 dias, prazo que alguns conseguiram prolongar por alguns meses.

Os imóveis ficam localizados nas ruas João Migliari e Padre Estevão Pernet, no bairro Vila Gomes Cardim. Segundo relatos de moradores, os sobrados datam dos anos 40 ou 50 e pertenciam a um único dono, que morreu meses atrás e costumava exigir dos inquilinos a manutenção das características externas originais (como a cor salmão, por exemplo).

Com a saída dos atuais inquilinos, moradores temem que o restante da vila também seja demolido. Um deles é o urbanista Lucas Chiconi, de 24 anos, que criou um abaixo assinado pedindo o tombamento dos sobrados, tendo atraído 36 assinaturas até a tarde desta quinta-feira, 21.

“Frequento a vila. Sempre me impressionou o estado de conservação, de estar em pleno funcionamento”, conta. “Cada ano que passa, a paisagem do bairro muda, porém, quando começa a destruir o que está bem conservado e em pleno funcionamento, começa a atacar uma história do bairro, que também é a história dos moradores.”

Hoje o distrito tem quatro imóveis tombados, dos quais dois são do século 17 (Antigo Sítio do Capão e Casa do Sítio Tatuapé) e os demais do início do século 20 (Parque do Piqueri e Escola Presidente Dutra). O número é inferior ao de vizinhos, como a Mooca e o Brás, que tem dezenas de bens arquitetônicos tombados.

Para Chiconi, há poucos imóveis que ainda guardam a memória do distrito. “Não existe um grupo de pesquisadores que observe esses territórios, onde o mercado imobiliário tem grande atuação”, diz.

O tombamento também é discutido por inquilinos, como o empresário Ivan Vasconcelos, de 55 anos, que mantém um espaço que é bar e barbearia na vila. “Me preocupo com a parte histórica do bairro. Não podia mexer na estrutura externa. Me preocupei, de deixar a parte interna original. Todo conversa girava em torno de que seria tombado.”

O empresário diz ter questionado o proprietário dos imóveis sobre a intenção de venda há três anos, o qual teria negado. Agora, reclama de ter gasto cerca de R$ 200 mil em obras no imóvel para ressaltar o aspecto “retrô”. “Não consigo hoje montar o mesmo empreendimento, teve custo.”

Na vila, há pelo menos três sobrados com placas para aluguel. Ao ligar para a imobiliária responsável, a reportagem foi informada de que a locação está “congelada”. Na internet, ainda é possível visualizar os anúncios, no valor de R$ 1.990 mensais.

Também inquilino, Antônio Celso Tessari é sócio de um escritório de contabilidade na vila há 15 anos. Ele lamenta deixar o local, mas considera a situação “inevitável”. “Vários já estão se mudando. Tem de acompanhar, não tem jeito. Da nossa parte, não tem muito o que fazer”, diz ele, que ainda não encontrou um novo espaço para se instalar.

Valeria Laund, de 53 anos, também trabalha na vila há bastante tempo, 20 anos. Ela é sócia de uma clínica de psicologia e fonoaudiologia, que atende cerca de 110 pessoas por semana. “Não estávamos sabendo até a notificação, nos pegou de surpresa. A gente nunca atrasou o aluguel e não nos oferecem a opção de comprar”, reclamou.

A empresária já alugou outro imóvel no entorno, junto com a atual sócia. “Vai faltar casas na região”, afirma. “Vou ter que reformar para dar acessibilidade, tenho clientes que são cadeirantes, idosos”, comenta. Ela também defende o tombamento dos sobrados: “Isso faz parte do Tatuapé. Os pacientes estão tristes, se sentiam acolhidos. Aqui parece o interior no meio da selva de pedra.”

A demolição também tem sido criticada em redes sociais. “O Tatuapé só será prédios daqui uns anos, todos em suas gaiolas, ninguém conhece os vizinhos”, reclamou uma moradora. “Estive no local hoje e foi doloroso ver que mais um pouco da história do Tatuapé escoa pelos bueiros da modernidade”, escreveu outra.

O analista de sistemas Fábio Soldá, de 37 anos, lamentou a demolição. “É uma região histórica do bairro. É um ponto de referência importante para os moradores antigos. É um bairro de tradição histórica grande, de história rural e industrial.”

Para Soldá, o crescimento do distrito nas últimas décadas “trouxe muitos benefícios”, mas agora está “predatório”. “Algumas demolições faziam sentido, porque era de coisas que não eram referência. Trazer prosperidade é uma coisa. Destruir um bairro e fazer outro no lugar aí é um problema sério”, diz.

Na parte que já foi demolida, a Ponte Engenharia e Urbanismo constrói parte de um projeto urbanístico e imobiliário privado para a região, chamado de Eixo Platina, que já foi apelidado de “Berrini da zona leste”.

Em nota, a empresa diz que as casas do lote demolido foram adquiridas em 2014, juntamente com outros terrenos da mesma família proprietária. “As outras casas similares que ainda existem na rua não pertencem à Porte Engenharia e Urbanismo”, informou.

A reportagem também procurou o advogado da família proprietária dos imóveis, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.