Desde que assumiu o comando do grupo Fiat Chrysler Automobiles (FCA) na América Latina, em março deste ano, o executivo napolitano Antonio Filosa, 44 anos, recebeu duas das mais importantes notícias de sua vida pessoal e profissional. A primeira – e mais emocionante delas – foi o nascimento de seu filho, o belo-horizontino Filippo, há dois meses. “Aprendi que ser pai é o que pode acontecer de melhor na vida de uma pessoa”, disse Filosa à DINHEIRO, sem esconder a empolgação com a chegada do novo integrante da família. A segunda notícia, menos importante, mas não menos animadora, como ele próprio define, foi a definição do programa de incentivos Rota 2030, que estabelece as regras para o mercado brasileiro de veículos. “É uma excelente política, que proporciona maior previsibilidade para os investimentos e abre caminho para a modernização da cadeia do setor.”

Resultado de mais de dois anos de negociações e uma centena de reuniões entre governo e empresas, a nova política industrial das montadoras terá duração de 15 anos. Serão três ciclos de cinco anos, com possibilidade de ajustes nas regras a cada fim de período. Seu efeito mais imediato é consolidar a abertura do mercado a modelos importados, com o fim definitivo da proteção de 30 pontos adicionais de IPI da proposta anterior, o Inovar-Auto. O programa durou de 2012 a 2017 e acabou condenado na Organização Mundial do Comércio (OMC), após frear o crescimento das importadoras no País, em especial chinesas e coreanas.

Pablo Di Si, presidente da Volkswagen: “Agora, conseguiremos que a inteligência e o conhecimento continuem aqui no País” (Crédito:Claudio Belli/Valor)

O foco principal, desta vez, é incentivar os investimentos de pesquisa e desenvolvimento, para garantir que os recursos das empresas globais sejam feitos também no Brasil, incluindo tecnologias locais, como o etanol. “Um programa de longo prazo traz previsibilidade, que se traduz em aumento de investimentos”, afirma Antonio Megale, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).

O anúncio, feito em 5 de julho, representa uma vitória do setor. Não só pelo estabelecimento de um prazo mais longo de planejamento, algo raro no Brasil, mas pela conquista de benefícios fiscais num momento em que o governo tenta reduzir subsídios para reverter o déficit nas contas públicas. A resistência do Ministério da Fazenda ao modelo de incentivos atrasou o anúncio da nova política em quase meio ano. A Pasta foi vencida. As estimativas iniciais sugerem uma renúncia fiscal de R$ 3,8 bilhões somente até 2020. As empresas poderão abater do Imposto de Renda parte do dispêndio feito com pesquisa e desenvolvimento. Os créditos ficam válidos durante todo o período – se a marca estiver tendo prejuízo, ainda terá o direito de usufruir o desconto quando voltar ao azul. A Fazenda queria vetar essa opção.

Quem alcançar as metas previstas de eficiência energética e de segurança veicular conseguirá ainda uma redução de até dois pontos percentuais na alíquota de IPI. Num carro 1.0, por exemplo, haveria uma redução dos 7% para 5%. O governo criou um incentivo a mais para a área de pesquisa, ao permitir que as companhias destinem o valor equivalente ao Imposto de Importação de peças que não tem similar no Brasil, de 2%, para fundos e instituições da área. Com todos esses instrumentos, as montadoras alegam ter condições de brigar pelos projetos nas matrizes e investir ao menos R$ 5 bilhões em pesquisa. A ideia é garantir recursos para avançar, por exemplo, no desenvolvimento da célula de combustível a etanol ou até mesmo em mecanismos para melhorar a eficiência dos motores flex, além da incorporação de itens de segurança, como mecanismos de proteção contra impacto lateral e obstáculos móveis.

Fábrica da BMW, em SC: assim como Audi, Mercedes e Jaguar Land Rover, a marca alemã perdeu a vantagem de produzir
no Brasil (Crédito:Divulgação)

Um exemplo de como essa combinação pode render frutos já está rodando pelas ruas do País. A Toyota está na fase final de testes de um modelo híbrido flex, que combina a tecnologia japonesa do elétrico com propulsão, misturada com o “tempero” brasileiro de etanol. O produto foi desenvolvido no ciclo do Inovar-Auto, que também tinha metas de engenharia e pesquisa. Por todo o mundo, os modelos híbridos e elétricos vêm sendo priorizados, num esforço para reduzir o impacto ambiental dos veículos. O Brasil ficou para trás na corrida dessas novas tecnologias e agora tenta recuperar o tempo perdido. Junto com o Rota 2030, o governo anunciou a redução de IPI para veículos elétricos, de 25% para 7%, e uma nova métrica para os híbridos. O texto do programa também abre caminho para criar um incentivo específico às marcas interessadas em nacionalizar a produção desses modelos, item que interessa marcas como Toyota, Nissan e BMW.

Se antecipando às novas políticas, a General Motors decidiu importar o elétrico Bolt a partir de 2019, num plano de investimentos de R$ 4,5 bilhões até 2020. O compacto virá sob a marca Chevrolet. Já a Nissan anunciou no início do ano que trará ao Brasil o seu modelo 100% elétrico, o Leaf, campeão mundial de vendas na categoria. A marca sinalizou a intenção de produzi-lo na fábrica de Resende, no Rio de Janeiro. “É um desejo de todos nós, executivos da indústria automobilística, que os carros brasileiros se equiparem aos melhores veículos produzidos no mundo em termos de segurança e eficiência energética”, afirma Marco Silva, presidente da marca no Brasil. Para ele, o Inovar-Auto “teve o seu valor” em um período em que era preciso proteger a indústria local, mas o Rota 2030 se apresenta como algo mais estratégico e de longo prazo. “Fico feliz com o fato de que o Brasil está criando uma política de Estado, não uma política de governo.”

Marco Silva, presidente da Nissan do Brasil: “O Brasil está criando uma política de Estado, não uma política de governo” (Crédito:Marcelo Tabach)

O anúncio do Rota 2030 vinha sendo aguardado com ansiedade dentro da FCA. Assim que chegou à presidência, Filosa definiu um plano de investimentos de R$ 14 bilhões até 2022. Além de ampliação e modernização de suas fábricas na cidade mineira de Betim e em Goiana, no interior de Pernambuco, o dinheiro será gasto no lançamento de 25 modelos nesse período – principalmente nos segmentos de utilitários urbanos e de picapes grandes, com a possibilidade de estreia da marca RAM no Brasil. “Agora que sabemos qual é a direção, dentro de um ambiente de regras mais sólidas, queremos fortalecer a nossa atuação em todos os segmentos e entrar de forma consistente naqueles que ainda não estamos”, garantiu Filosa.

A estratégia de investimentos e lançamentos, respaldada pela nova política setorial, também recebeu sinal verde do presidente global da companhia, o italiano Sergio Marchionne. Nos últimos anos, o chefão da empresa esteve no Brasil – que, depois da Itália, é o maior mercado para a marca Fiat no mundo – em várias ocasiões e cobrou, pessoalmente, para que o País adotasse uma postura clara em relação ao setor, depois da extinção do Inovar-Auto. “A maturidade industrial brasileira, que possui os melhores profissionais do mundo e um imenso potencial energético com o etanol, precisava de uma política robusta de desenvolvimento industrial. O primeiro passo foi dado”, disse Filosa. A empresa conta hoje 1,2 mil engenheiros e 200 designers no Brasil.

A maior previsibilidade das regras dará melhores condições para as montadoras instaladas no Brasil concorrer no mercado global. Para o presidente da Volkswagen do Brasil e América do Sul, o argentino Pablo Di Si, o destaque da nova política é a capacidade de atrair investimentos de longo prazo para o País, reduzindo a distância tecnológica entre os carros produzidos localmente e os que saem das fábricas na Europa. “Agora, conseguiremos que a inteligência e o conhecimento continuem aqui no País”, disse o executivo. “Além de atender as demandas específicas dos consumidores locais, vai criar divisas para o País por meio das exportações dessas inovações.” Nos últimos meses, as vendas ao exterior vinham fazendo a diferença para a a indústria nacional. A instabilidade nos dois principais destinos, Argentina e México, porém, obrigou o setor a rever suas projeções para 2018. A expectativa agora é de um crescimento de 11,9% na produção, ante previsão inicial de 13,2%.

Produção do VW Virtus: os novos investimentos em segurança e eficiência energética darão ao Brasil carros de padrão de qualidade mundial (Crédito:Divulgação)

É esta equiparação tecnológica que o empresário José Luiz Gandini, presidente da Kia Motors e da associação dos importadores de veículos, a Abeifa, considera fundamental para preparar a indústria brasileira para o tão aguardado acordo de livre comércio com a União Europeia. “Agora, com o Rota 2030, podemos importar e exportar em condições de igualdade”, afirmou Gandini (leia entrevista na ao final da reportagem). “Caso contrário, estaríamos condenados a apenas vender carro ruim para Paraguai, Uruguai e Argentina.” A marca, que chegou a vender 80 mil unidades em 2011, foi uma das mais prejudicadas pela proteção do Inovar-Auto. Neste ano, a coreana prevê um crescimento de mais de 50%, para cerca de 16 mil unidades. O fim da barreira tarifária aos importados abre ainda o caminho para a entrada de novas marcas no País. Além da RAM, o grupo FCA também avalia trazer modelos da divisão de luxo Alfa Romeo. A participação dos importados, que chegou a 23% em 2011, caiu pela metade ao final do Inovar-Auto. A estimativa do governo é a de que volte para próximo de 20%.

FÁBRICAS PREMIUM Se o clima é de alívio entre a maior parte das empresas do setor, um grupo de quatro fabricantes ainda vive um período de tensão. As alemãs Audi, Mercedes e BMW, além da britânca Jaguar Land Rover, inauguraram fábricas de baixo volume de produção no Brasil para driblar a proteção dos 30 pontos adicionais determinados pelo Inovar-Auto. Sem essa barreira, as unidades produtivas perdem sentido. As quatro negociavam um incentivo extra para compensar o investimento feito sob medida ao estímulo criado no governo anterior. Um projeto de lei foi enviado ao Congresso junto com o Rota 2030, permitindo a prorrogação de créditos tributários acumulados no Inovar-Auto. A medida, porém, não é suficiente para afastar o risco de desligamento das fábricas pelas matrizes. A expectativa é a de que um benefício específico seja anunciado até a publicação do decreto que regulamentará o novo programa, nos próximos 30 dias. Caso contrário, seria o oposto da previsibilidade prevista no Rota 2030, ou seja, a nova política anulando a antiga.


“A política anterior estava nos matando”

José Luiz Gandini, presidente da Kia e da associação dos importadores (Abeifa), falou à DINHEIRO:

Os importadores ficaram satisfeitos?
Atende principalmente ao critério da isonomia. Agora, vamos pagar os mesmos impostos que as montadoras brasileiras, com acréscimo de 35% de taxa máxima de importação. Desde setembro de 2011, vínhamos pagando um adicional de 30 pontos percentuais que, com o dólar no preço que está, inviabilizava a operação. Tínhamos 180 concessionárias em 2011, com a venda de 80 mil veículos. Agora estamos com 92 revendas e vendemos 7,8 mil carros no ano passado. Ou seja, a política anterior estava nos matando.

Importar será um bom negócio?
Com o dólar acima de R$ 3,20 ou R$ 3,30, importar é um grande desafio. O Brasil mudou. A concorrência aumentou e as montadoras instaladas no País têm o que existe de melhor em maquinário e tecnologia. Já quase não existe diferença entre o carro importado e o nacional na questão de qualidade. Agora, com o Rota 2030, podemos importar e exportar em condições de igualdade. O programa nos deixará em condições de fechar o acordo de livre comércio com a União Europeia sem qualquer receito. Acredito que esse acordo vai sair.

A questão dos custos foi equalizada?
Os custos continuam elevados e praticamente dobraram. Dou um exemplo. O modelo de entrada do Kia Sportage custava R$ 90,9 mil, em 2011, quando o dólar estava em R$ 2,60. Hoje, sete anos depois com o dólar a R$ 3,80, esse mesmo carro custa R$ 114,9 mil. Naquele ano, os associados da Abeifa importaram 80 mil unidades. Fechamos 2017 com 29 mil carros e devemos encerrar 2018 com 40 mil. Não temos a ilusão de que voltará aos patamares anteriores. Nunca mais.


“Benefício à pesquisa é uma gota d’água no oceano dos gastos públicos”

Antonio Megale, presidente da associação das montadoras (Anfavea), falou à DINHEIRO:

Qual é a previsão de investimento que o Rota 2030 pode trazer ao Brasil?
O Rota 2030 traz uma possibilidade de investimentos em pesquisa e desenvolvimento que estavam ameaçados. No Inovar-Auto, as empresas investiram em média R$ 5 bilhões ao ano. Com o Rota 2030, entendemos que esse número será mantido ou até acrescido. Sem ele, as empresas não fariam esses investimentos no Brasil. Perderíamos a capacidade de desenvolver a tecnologia de biocombustível, de etanol e biodiesel. Isso é uma potencialidade do Brasil.

Houve um embate entre os ministérios do Desenvolvimento e da Fazenda. Como foi?
O presidente tomou uma decisão para que lado vai: se é somente controlar, ou se tem uma linha desenvolvimentista também. Um programa de longo prazo traz previsibilidade, que se traduz em aumento de investimentos.

Os veículos vendidos no Brasil alcançarão o nível tecnológico dos mercados maduros?
Os nossos veículos já são equivalentes ao que se tem lá fora. Com o Rota 2030, vamos avançar mais, vamos ficar na linha de frente principalmente na implementação de equipamentos de segurança.

O impacto fiscal gerou críticas ao programa. Qual é o argumento da indústria para defender essas renúncias?
Pesquisa e desenvolvimento. O país que não investir nessa área está fora no futuro. Benefício à pesquisa é uma gota d’água no oceano dos gastos públicos . Sem isso, somente receberíamos o que os outros desenvolvem.