A crise financeira global de 2008, que levou centenas de empresas à falência nos Estados Unidos e resultou na demissão de mais de 35 mil trabalhadores da poderosa indústria automobilística americana, ficou conhecida como “derrocada de Detroit” — em alusão à decadência da cidade que abriga os QGs de gigantes como Ford, GM e Chrysler (essa última comprada à beira da falência pela italiana Fiat). Naquele ano, as vendas de carros zero quilômetro caíram, em média, pouco mais 20%. Era a pior situação do setor desde a Grande Depressão de 1929.

A comparar os resultados de 2008 com os de hoje pode-se afirmar que as montadoras eram felizes e não sabiam. No mês passado, as vendas de automóveis no mercado interno despencaram 74,7% em relação ao mesmo mês do ano passado, de acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Em números absolutos, foi o pior maio desde 1992, com apenas 62,2 mil unidades comercializadas. “Devido à queda substancial na receita, vários investimentos foram congelados, o que já causou impactos nos cronogramas de lançamentos de produtos”, afirma Luiz Carlos Moraes, presidente da entidade. “Como nunca havíamos visto na história recente da humanidade uma pandemia com essas proporções, com impactos globais, essa é uma questão de sobrevivência.”

Entre 2018 e 2022, o ciclo de investimentos das montadoras instaladas no Brasil somava R$ 36,7 bilhões. Com a pandemia, no entanto, estima-se uma redução de 20% a 30% nesse valor, além do prolongamento d`o prazo para 2023 e 2024. Entre os exemplos da mudança de rota das montadoras está a suspensão da parceria global entre Ford e a Volkswagen, que no início do ano passado anunciaram um acordo para desenvolvimento conjunto e compartilhamento de tecnologias. O primeiro passo do casamento se daria no segmento de picapes neste ano, mas, ao que tudo indica, está em suspenso até 2021. Segundo a Volkswagen, o projeto segue em fase de estudos. Já a Ford não comenta suas estratégias de mercado.

A revisão dos valores e o alongamento da execução dos planos não significam que as montadoras estão em ponto morto. As fábricas que pararam de produzir em meados de março, por razões sanitárias, já estão voltando a operar de forma gradativa. Segundo Moraes, essa volta está sendo cercada de muitos cuidados, com reuniões diárias com os fabricantes, equipes médicas nas unidades e monitoramento 24 horas por dia. “A retomada vai ser gradual e com cautela. Mais importante do que voltar a produzir e vender carros, é garantir a saúde e a segurança de todos os trabalhadores.”

Apesar das incertezas, o panorama à frente pode não ser tão tenebroso. Para o CEO da Bright Consulting Paulo Cardamone, as empresas hoje estão mais confiantes do que há dois meses. “Buscamos referências em outros mercados. No final de março e em abril, foi pintado um verdadeiro desastre para o mercado automotivo. Entretanto, na China o mercado voltou ao patamar de mais de 90% do que era antes do início da pandemia em cerca de três meses”, afirmou. A previsão da consultoria é de que, no Brasil, seja alcançada a marca de pouco mais de 2 milhões de veículos vendidos em 2020. “Acreditamos que essa recuperação seja acelerada nos meses de julho, agosto e setembro.”

PÁTIOS CHEIOS Com a pandemia, as montadoras suspenderam a produção em Março. (Crédito:Fabio Braga)

Além do medo e das incertezas sobre o futuro, a pandemia também trouxe reflexões que vieram para ficar. Uma delas é sobre a necessidade de produzir componentes para a indústria automotiva localmente para acabar com a dependência de fornecedores da Ásia. Ao mesmo tempo em que a pandemia forçou as empresas a adotarem medidas para preservar os negócios, também as obrigou a serem criativas para manter a competitividade, sempre visando ao momento da retomada da economia. “Essa fase que estamos vivendo pode definir uma geração e essa experiência mudará como veremos as coisas daqui para frente”, diz Antonio Baltar Junior, diretor de vendas e serviços da Ford.

DIGITALIZAÇÃO Com o isolamento social, o mundo digital tornou-se essencial não só para ter contato com familiares e amigos, mas também para fazer desde as compras mais simples do dia a dia, como pedir uma refeição, até a escolha de um carro. Muitas fabricantes já aderiram a essa forma de venda, que agora tem demonstrado ser fundamental. No ano passado, as transações de varejo que se iniciaram no ambiente digital corresponderam por mais de 25% das vendas totais da Chevrolet. “Com a pandemia, o volume total de negócios está caindo muito. Porém, o percentual de vendas que se iniciam on-line tende a aumentar. Esse caminho da digitalização é algo que estamos trabalhando já há alguns anos e que se intensificou ainda mais com a pandemia”, afirma Hermann Mahnke, diretor-executivo da General Motors América do Sul.

Os canais de vendas on-line e os processos digitais impulsionam prospecções especialmente nos grandes centros ainda muito afetados pela pandemia. Por outro lado, segundo Baltar, como o Brasil é um país de dimensões continentais, já existem regiões que estão recuperando os seus índices de vendas pré-Covid, como o Sul e Centro-Oeste, sendo esta última impulsionada principalmente pelo agronegócio. “Percebemos que os clientes têm gastado mais tempo no digital para ver as ofertas, modelos, cores e demais informações técnicas, mas não deixam de ir à concessionária para fechar o negócio, chegando mais decididos sobre o que vão comprar.”

INCENTIVOS Para voltar a vender, as montadoras estão oferecendo diversos benefícios para o consumidor, como financiamentos com carência e parcelas pela metade até dezembro de 2021, opções de compra sem sair de casa, bônus atraentes, preços de revisão congelados desde antes do início do isolamento social com facilidade no pagamento, extensão do plano de revisão e das garantias, além de planos de cuidados para conservação dos veículos parados durante a quarentena e higienização interna do veículo.

“Devido à queda na receita, investimentos foram congelados, o que já causou impactos nos cronogramas de lançamentos” Luiz Carlos Moraes, da Anfavea. (Crédito:Luiz Carlos Moraes, da Anfavea)

Para Antonio Filosa, presidente da FCA América Latina, o novo perfil de consumo dos indivíduos e da sociedade pós-pandemia está sendo objeto de muito estudo, com o apoio de análises antropológicas e sociológicas para entender como a crise afetou o ser humano. O executivo diz ter dividido a crise em cinco etapas para melhor compreender seu impacto sobre as pessoas: “A incubação, que vai da excitação à banalização; o pânico, com reflexos de fuga; o isolamento, com distanciamento e ansiedade; o rethinking, com incerteza e esperança; e novo normal, com a hesitação e facilitação”, disse.

A soma de tudo isso, segundo ele, exerce enorme pressão sobre as pessoas e sociedade, afetando os pilares básicos do equilíbrio global e provocando disrupções. Pilares como economia e distribuição de renda, saúde pública, educação, infraestrutura e mobilidade, normas regulatórias, geopolítica, demografia, tecnologia, mídia e telecomunicações, estão em flagrante transformação. “O saldo da pandemia será paradoxal. De um lado, a renda e o poder aquisitivo agregado retrocederão o equivalente a uma década. Por outro lado, a digitalização da sociedade avançará uma década”, afirma Filosa.