No fundo do ateliê de costura, dois caldeirões de aço sopram um vapor quente, sob cuidados para que a água não atinja o ponto de fervura. Cozinhando em um deles, a serragem de pau-brasil começa a oxidar e, ao longo de 40 minutos, vai ganhando uma coloração vermelha até virar tinta.

O mesmo processo ocorre com folhas de goiabeira, cajueiro ou acácias negras – alguns dos ingredientes usados para fixar a pigmentação nos tecidos. Antes de ser tingida, a roupa branca também é fervida e fica livre de impurezas. Três “cozinheiras” coam os panelões, banham as peças no fixador e as finalizam mergulhando no corante natural.

A rotina de trabalho na “cozinha de cores” da estilista Flavia Aranha foi adotada em 2008, quando ela deixou a indústria têxtil convencional para resgatar técnicas milenares de tingimento. A cadeia produtiva que a abastece tem cerca de 30 comunidades ativas durante o ano, entre cooperativas de confecção de tecidos, fornecedores de matéria-prima e de resíduos para as tintas.

Cada vez mais, iniciativas no setor de moda têm optado por algodão sem agrotóxicos, tintas orgânicas e reciclagem para produzir suas peças. O movimento envolve desde iniciativas que apoiam comunidades tradicionais até o “upcycling” – técnica que reforma peças usadas para adaptá-las a novas coleções. Nesta semana, um evento de moda exclusivo para iniciativas sustentáveis em São Paulo, a Brasil Eco Fashion Week, teve mais de cem marcas inscritas e 70 participantes selecionados. Em abril, o centenário museu Victoria & Albert, em Londres, será palco da maior exposição sobre moda sustentável já vista, a Fashioned from Nature.

A serragem de pau-brasil seria descartada por uma fábrica de arcos de violinos no Espírito Santo, mas ganhou novo destino no ateliê. Flávia Aranha também recolhe restos de alimentos como cascas de cebola, romã e jabuticaba para extrair pigmentos, mas o conceito não fica só nas cores. A produção das roupas é feita em parceria com cooperativas de costureiros artesanais, que, além do pagamento pelo trabalho, recebem eventualmente mentoria e oficinas de especialização. “Queremos, a partir da nossa parceria, que elas sejam independentes e autônomas”, conta Flávia. “Alguns artesãos me disseram que entender de forma holística cada operação da confecção de roupas ajudou a valorizar seus trabalhos.”

Uma das clientes mais fiéis é a psicanalista Ligia Rabinovitch, de 53 anos. Ligia compra roupas sustentáveis há mais de uma década e criou algumas regras para os hábitos de consumo. Em primeiro lugar, evita comprar o que não precisa. Quando pesquisa a origem dos produtos, dá preferência àqueles que pagam melhor aos costureiros artesanais e desenvolvem trabalhos comunitários. Ao adquirir uma roupa nova, sempre se desfaz de uma ou duas peças do velho guarda-roupa e as encaminha a novos donos.

A psicanalista também dá roupas de algodão orgânico de presente a amigos, e apresentou o trabalho de Flavia à filha, de 21 anos, e à mãe, de 75. “Se você usa algodão orgânico, nunca mais vai usar um sintético na vida porque o toque não dá nem para comparar, é muito melhor”, conta Ligia. “Não é radicalismo, mas acho que é uma atenção que, devagarzinho, vai sendo montada.”

Algodão

Parte do algodão fornecido à oficina de Flavia é cultivado em fazendas do Ceará e do Mato Grosso do Sul por cerca de 250 famílias associadas a uma rede de cooperativas. Da lavoura, o produto segue para galpões em Minas, onde se faz a fiação e a tecelagem. Uma parte dos tecidos é vendida, e outra é encaminhada a costureiras no Rio Grande do Sul. Tudo isso faz parte da rede Justa Trama, que reúne as cooperativas.

Do começo ao fim da cadeia produtiva, nenhum produto sintético é utilizado. “Nos incomoda muito o tanto de veneno que é colocado no algodão (convencional)”, diz a costureira Nelsa Nespolo, uma das idealizadoras. “Além de envenenar a água e a terra, ele tem esse contato direto com as pessoas.” A percepção de crescimento na oferta de roupa sustentável é consenso entre especialistas, empresários do ramo e consumidores. Com iniciativas dispersas e nem sempre ligadas só às questões ambientais, faltam dados sobre o tamanho do segmento. “A fabricação de produtos com maior durabilidade, pagamento justo da mão de obra, tudo isso (também) é sustentabilidade”, diz o professor Welton Zonatti, que fez mestrado e doutorado na área de moda sustentável e dá aulas no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) sobre o assunto. “Esse nicho sustentável é algo com que os novos alunos, os formandos em Moda, estão se preocupando, se mobilizando, montando startups.”

Precursora da técnica de “upcycling” na América Latina, a uruguaia Agustina Comas, radicada em São Paulo desde 2004, pediu demissão da Daslu Homem, após cinco anos como estilista da grife, e criou a Comas, marca que coleta resíduos da indústria têxtil, em sua maioria camisas masculinas defeituosas. “Escolhi as camisas masculinas por serem versáteis para desconstruir e recriar. Elas também são atemporais, o que contribui para a durabilidade do produto”, justifica Agostina.

A empresa criou o próprio tecido a partir daquilo que seria descartado por indústrias têxteis e viraria lixo. Batizado de Oricla, a inovação conseguiu o segundo lugar no prêmio de design do Museu da Casa Brasileira (MCB), no ano passado.

Evitar o desperdício foi uma das preocupações da gestora Ana Sarkovas, diretora executiva da fundação Sistema B, que certifica empresas sustentáveis. Grávida de sete meses, Ana assumiu o desafio de só comprar roupas de bebê que tenham origem conhecida. Com o corpo em constante mudança, ela também usa um serviço de aluguel de roupas: após um mês de uso, devolve as peças e recebe outras novas, adequadas para cada mês da gestação. “A indústria de moda está sim passando por um processo de transformação, de olhar os impactos negativos que está gerando”, diz Ana. “Eu me sinto, às vezes, muito incoerente: estou andando de carro com uma bolsa de couro, e com um vestido da Flavia Aranha. Eu mesma não consigo ser 100% coerente, mas acho que estamos em um momento de transição.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.