A feito ao termo mito, Jair Bolsonaro usou a campanha eleitoral para criar alguns que sustentariam parte de seu eleitorado. Um deles foi a “caixa-preta do BNDES”. Com tom de arauto da moralidade, ele afirmava que iria investigar as operações do banco para revelar o que comprovaria mais uma “corrupção petista”. Passados dois anos e meio de seu mandato, e R$ 48 milhões gastos com auditoria, nada foi descoberto sobre a malfadada sombra no banco de desenvolvimento. Mas outro buraco negro de recursos — desses que só o Brasil é capaz de parir — surgiu. É o Ministério do Desenvolvimento Regional, de Rogério Marinho.

Menos óbvia do que se pensa, essa caixa-preta fiscal vem revestida na legalidade constitucional, já que sua existência envolveu duas mudanças práticas que passaram pelos meandros de Brasília. Coincidentemente, ambas a partir do governo Bolsonaro. Na primeira, a obrigatoriedade de auditorias internas e externas nas contas dos ministérios foi eliminada. No ano passado, das grandes pastasm apenas a de Economia fez as suas. A outra malandragem legal foi dar um superpoder ao relator do Orçamento. A partir deste ano ele pode alocar emendas sem vinculá-las à base do parlamentar. Isoladamente ninguém prestou atenção às duas alterações. Somadas, o estrago vem à luz: deu-se aparência de dignidade a uma forma de driblar o controle de gastos públicos, bilionário.

Até agora o roteiro desse Orçamento que ganha cara de macabro envolve as emendas parlamentares, em especial os R$ 18,5 bilhões do relator-geral, que nascem sem lastro. Em meio aos expressivos cortes no orçamento dos ministérios, não foi difícil achar voluntários. Aí aparece o Desenvolvimento Regional, que poderá receber até R$ 10 bilhões em projetos parlamentares, o equivalente a um terço das despesas totais da Pasta em 2021.

TUDO BEM ORGANIZADO: O Desenvolvimento Regional, de Rogério Marinho, precisa das emendas parlamentares, Arthur Lira e Márcio Bittar são os astros que garantem que ela possa chegar de forma robusta, legal e sem lastro para dentro da Pasta.

O ministério comandando por Marinho, no entanto, não seria o único destino do dinheiro das emendas. Entre os queridinhos do Legislativo aparecem outros dois que sabidamente ganham aos olhos da opinião pública status de intocáveis: os da Saúde e da Educação. O primeiro poderá captar até R$ 9 bilhões. O segundo, R$ 8 bilhões. É a trinca mágica para deixar pavimentada a aliança Bolsonaro-Centrão. E não é difícil entender por que o Desenvolvimento Regional lidera a tríade. “Por ser menos centralizado, há mais espaço para manobras”, disse o professor de direito Constitucional e ex-diretor do Portal Transparência, Gustavo Guerra.

No caso do buraco negro das emendas parlamentares, a confluência do fisiologismo do Congresso e a necessidade constante do governo em manter base para evitar pautas que o desagrade criaram um monstro constitucional. E assim chegamos em R$ 35,5 bilhões em emendas no ano de 2021. Até 2015, elas não eram de execução obrigatória pelo governo. Com a pressão em cima da ex-presidente Dilma Rousseff o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 86, obrigando a execução de emendas individuais e criando o Orçamento Impositivo. Em 2019, o Congresso ampliou o Orçamento Impositivo com a Emenda Constitucional 100. Ela tornou obrigatória também as emendas de bancadas estaduais, com 50% dos recursos para obras. Ponto para o Ministério do Desenvolvimento Regional. Não contentes, os parlamentares criaram o maior cheque especial do planeta: R$ 30 bilhões em emendas anuais que seriam indicadas pelo relator-geral do Orçamento, nesse caso, Márcio Bittar. O presidente Bolsonaro, diga-se, vetou o valor sugerido e aprovou módicos R$ 20 bilhões.

Economista e membro do conselho econômico da ONU, Otávio Schinfler diz ser compreensível a busca dos parlamentares por investimento para as bases eleitorais. Mas eke discorda da “pessoalização” da emenda. A pessoalização a que se refere é colocar o nome e o partido do parlamentar acima da demanda. “Isso tira o protagonismo do contribuinte e põe o holofote na barganha do parlamentar.” Bingo. A lei não foi alterada para atender o cidadão, foi para ser combustível do fisiologismo.

O minsitro Rogério Marinho chegou a declarar que não haveria motivação para o presidente direcionar recursos para a oposição, que “agride o presidente todos os dias”. Com o dinheiro garantido e os aliados definidos, a entrada das emendas parlamentares caiu como uma luva para os ministérios fragilizados pelo corte no Orçamento em 2021. O MDR, por exemplo, perdeu R$ 9,5 bilhões na comparação com 2020. Isso numa leitura rasa. Numa leitura um pouco mais aprofundada, ele deixou de ser uma pasta estratégica e para ser um balcão de acordos políticos.

SEM AUDITAR Como se o estrago já não fosse grande o bastante para controle de contas públicas, uma decisão tomada nos primeiros momentos do governo Bolsonaro piorou o cenário. Os ministérios ficaram desobrigados de auditarem interna e externamente suas contas, algo que era mandatório desde 2005, sob o primeiro mandato de Lula. Agora cabe aos chefes das Pastas prestarem as contas apenas ao Tribunal de Contas da União e à Controladoria Geral da União (AGU). A prática da auditoria, que vigorava em sintonia com normas internacionais, foi afrouxada como parte de um pacote adotado por Paulo Guedes em fevereiro de 2019 sob o pretexto de revisar gastos internos dos ministérios.

O resultado logo apareceu. Em outubro de 2020, a AGU apresentou problemas relevantes nas contas de praticamente todos os ministérios de Bolsonaro, incluindo o MDR. No caso deste, na peça que avalia as contas de 2019 relatou-se falhas na clareza, objetividade e concisão de informações, entre outras críticas aos processos adotados pela Pasta para compilação e metodologia de apresentar números. Com relação aos indicativos da CGU, o MDR afirmou à reportagem já ter tomado as primeiras medidas para reverter a situação para 2020, inclusive com a criação de um Comitê Interno de Governança e revisão do planejamento estratégico institucional. “A revisão está em curso e envolve a correção de fragilidades identificadas em alguns dos indicadores, bem como a realização de melhorias metodológicas para aprimorar o monitoramento dos resultados das políticas públicas e dos programas geridos por esta Pasta”, relatou o Ministério.

Para Manuela Salamanca Farias, representante brasileira nas Organização Latino-Americana e do Caribe de Entidades Fiscalizadoras Superiores (OLACEFS) há problemas substanciais na forma como todos os representantes do Executivo brasileiro reportam seus dados. “A Lei de Responsabilidade Fiscal foi um grande avanço, mas a falta de capacidade técnica de muitos gestores é notória”, disse, levando o problema também para dentro dos estados e municípios. Na avaliação da especialista, os problemas são ainda maiores diante do tamanho do Brasil, e quando há medidas como essas emendas sem lastro, as chances de achar de perder o controle do recurso é gigante. “O governo pensa em diminuir a abrangência das pesquisas do IBGE. Isso acabaria com qualquer chance de mapear para onde foram os recursos parlamentares.”

Essa junção de mais dinheiro por emendas, via ministérios frouxos e pouco afeitos a controles básicos, como o de uma auditoria externa, produziram o novo fenômeno de destinação do dinheiro público. Brasília se superou. Na física quântica, os cientistas afirmam que a abertura do buraco negro acontece quando há uma concentração tão grande de massa em um espaço tão compacto que, de tão denso, é capaz de modificar o tempo e o espaço. Foi o que o Brasil conseguiu.