Não é de hoje que a indústria automobilística enfrenta desafios no mercado brasileiro. A variedade de veículos pode ser positiva para o consumidor, mas a escala de venda não sustenta os custos de fabricação. Inicialmente atraídas por benefícios fiscais, hoje as montadoras enfrentam uma conta que não fecha. Segundo levantamento da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), o total de licenciamentos de automóveis no comparativo entre janeiro e novembro de 2019 com o mesmo período de 2020 apresentou queda de 32% para a Mercedes-Benz. A redução se repetiu nas demais montadoras que instalaram plantas no País a partir de incentivos recebidos em anos recentes – 22,8% para a Jaguar Land Rover, 20,6% para a Audi e 7,9% para a BMW. Para fugir desse cenário, a montadora comandada desde julho deste ano por Karl Deppen, presidente da Mercedez-Benz do Brasil e CEO da América Latina, anunciou o fechamento da fábrica de Iracemápolis, no interior paulista, deixando de produzir veículos premium no Brasil. O sinal de alerta do mercado está ligado. A unidade, inaugurada em 2016, era palco da produção dos modelos Classe C e GLA. Para Jörg Burzer, membro do conselho, a economia brasileira justificou o encerramento das operações. “A situação econômica no Brasil tem sido difícil há muitos anos e foi agravada pela pandemia”, afirmou em comunicado. A decisão teria partido da matriz, na Alemanha.

Também de partida está outra gigante alemã. Em setembro, o CEO e presidente da Audi, Johannes Roscheck, anunciou que a fabricação do modelo A3 Sedan, feita no Paraná, seria paralisada, com previsão de interrupção por um ano. O argumento da montadora do Grupo Volkswagen é de que “boa parte da decisão passa pela definição do que irá ocorrer com os créditos de IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados] acumulados durante o programa Inovar-Auto e que não foram integralmente devolvidos”. Outras automobilísticas ameaçam corriqueiramente deixar o País. O programa se tornou vilão oito anos depois de entrar em vigência. Inicialmente criado para proteger a produção local, dando início à aplicação de uma taxa adicional no IPI, o Inovar-Auto levou grandes montadoras estrangeiras a iniciarem ou retornarem com a linha de produção local. A cobrança extra de 30 pontos percentuais sobre veículos importados no Brasil foi condenada, posteriormente, pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Como resultado, o governo brasileiro assumiu o compromisso de devolver o dinheiro pago ao “super IPI” pelas montadoras, mas isso nunca aconteceu. Esse fator também agravou a decisão da Mercedes-Benz, que possui R$ 70 milhões em créditos a receber.

Divulgação

“A situação econômica no Brasil tem sido difícil por muitos anos e se agravou com a pandemia” Jörg Burzer, membro do conselho da Mercedes-benz.

Mas o Inovar-Auto não é o único culpado pela atual situação do mercado automobilístico brasileiro. A instabilidade política e a incapacidade de inserção do Brasil em investimentos ligados à redução de emissões de poluentes também se mostram como uma pedra no caminho trilhado pela indústria automobilística mundial, atualmente focada em produção de carros elétricos. No comunicado de saída, a Mercedes-Benz afirmou que “está trabalhando rumo ao futuro da mobilidade neutra em CO2 e investindo na transformação da companhia, com foco na eletrificação e digitalização de seus veículos”. Nessa linha, em junho o ex-presidente da Mercedes-Benz do Brasil e atual CEO da Mercedes-AMG na Alemanha, Philipp Schiemer, afirmou que “os investimentos só irão para países que tenham certa estabilidade e capacidade de planejamento. Nesse sentido, o Brasil ainda tem que fazer mais lição de casa”. Schiemer ainda apontou os futuros rivais do mercado brasileiro. “China e Índia, por exemplo, são muito mais atraentes que o Brasil.”

Essa falta de preparo agrava a situação do setor, intensamente impactado pela pandemia. Segundo levantamento da Anfavea, a paralisação das fábricas resultou na queda de 99% da produção mensal em abril, atingindo o menor nível histórico. A recuperação aconteceu somente neste final de ano, com o registro do melhor mês de produção em novembro. Mas a situação é tão delicada que o aumento é de apenas 4,7% na produção de automóveis em relação ao mesmo mês de 2019. A queda, no comparativo dos primeiros onze meses de 2019 e de 2020, é de 35%.

IMPACTO Sem divulgar a produção anual da unidade, que foi projetada para atingir uma média de 20 mil veículos fabricados anualmente, gerar 750 postos de trabalho diretos e quase 3 mil indiretos, a Mercedes-Benz deixa o interior de São Paulo e 370 colaboradores com um futuro indefinido. Em nota, a companhia afirma que vai buscar alternativas para os funcionários, incluindo a possibilidade de um Programa de Demissão Voluntária. Para o Sindicato dos Metalúrgicos de Limeira e Região, o impacto da saída da montadora alemã será sentido por toda a economia do entorno. “Foi criada uma estrutura para acompanhar a fábrica. É uma marca grande que dá força à região. Muita gente vai ser atingida, inclusive pessoas de outras cidades”, afirmou o diretor do sindicato, João Donizete.

Com o encerramento das atividades em Iracemápolis, a Mercedes-Benz continua com duas fábricas em operação no Brasil. Inaugurada em 1956, a unidade de São Bernardo do Campo (SP) foi a primeira instalada em solo brasileiro e é a maior planta para veículos comerciais do Grupo Daimler fora da Alemanha. Nela são produzidos caminhões e chassis de ônibus. A segunda unidade fica em Juiz de Fora (MG). Inaugurada em 2012, a fábrica é responsável pela produção de cabinas de caminhões. Na corrida pela sobrevivência e à espera de ação concreta do governo, resta saber qual gigante do setor automobilístico será a próxima a encerrar a produção no País.