Dois anos após terminar a Guerra Fria, Caetano Veloso cantava que “alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”. E ele não estava totalmente errado. Ao fim de uma pandemia e estreitando laços com outras nações, o governo de Moscou deu o passo que faltava para confirmar que a sensação de tranquilidade mundial era uma impressão. Na quinta-feira (24) começou a invasão russa em território ucraniano. Líderes ao redor do mundo condenaram a ação do presidente Vladimir Putin, e prometeram aplicar severas sanções econômicas para estrangular o país. Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, foi um dos primeiros a falar. “O mundo pode e deve frear Putin. A hora de atuar é agora”, disse. Na Europa, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, também foi categórico. “O bloco prepara o maior pacote de sanções de sua história.” Reuniões em órgãos internacionais, tensão mundial e reflexos na retomada da economia global dão o tom do maior conflito armado desde o pretenso início de uma nova ordem mundial, que garantiria que tudo ficaria bem.

Wolfgang Schwa

Mesmo sem o envio de tropas dos Estados Unidos e da União Europeia para ajudar a Ucrânia, o ataque poderá se tornar o maior conflito militar na Europa desde a Segunda Guerra. A Otan estima que a Rússia tenha mobilizado 190 mil soldados para a ofensiva que, como declarou Putin, envolve invasão por terra, ar e mar. São mais soldados do que os enviados pela antiga União Soviética ao invadir a Hungria e Tchecoslováquia.

Com isso, líderes de todo o mundo já prometeram reduzir o acesso russo ao comércio global. A Alemanha já anunciou sanções contra cinco bancos russos, o Reino Unido interrompeu três obras iniciadas em parceria com o país. A União Europeia também estuda congelar a atividade de empresas russas que atuam no bloco. Ainda está em análise o impedimento do governo russo de negociar em dólar e excluir a Rússia do serviço global de mensagens financeiras Swift, usado por milhares de instituições financeiras em todo o mundo. Há ainda a possibilidade de suspensão de projetos de ciência, inovação e tecnologia que tenham como parceiro algum ente russo, entre eles Austrália, Canadá e Japão. Mais alinhado com a Rússia, o governo chinês, por meio da porta-voz da diplomacia, Hua Chunying, não condenou Putin, apenas pediu mediação para que o conflito não se agrave.

Petróleo Enquanto a diplomacia tenta prever os próximos passos, a economia já sentiu o baque. O barril de petróleo superou US$ 100 pela primeira vez desde 2014. As bolsas dos Estados Unidos, da China, da França e da Inglaterra operaram, até as 13h da quinta-feira (24), em uma baixa média de 1,2%. Um dos temores é a interrupção de obras importantes de energia, ecomo a do gasoduto NordStream 2, o que pode acarretar em uma crise energética em toda a Europa. Segundo o cientista político da Eurasia Group, Christopher Garman, mapear o efeito dominó neste momento é um desafio. “Quando você inicia um processo como esse, os desdobramentos são imprevisíveis.”

NO ATAQUE Ofensiva iniciada por Vladimir Putin mobilizou 190 mil soldados e tem causado destruição e morte na Ucrânia. Países ricos condenam invasão — exceto China (Crédito:Sergei Karpukhin)

No Brasil o impasse também trará efeitos nefastos. A disparada do petróleo e do dólar, por exemplo, pressionam ainda mais a inflação. A relação comercial entre os países, em especial na venda de fertilizantes e carnes, é outro quesito a se ficar de olho. A falta de confiança emperra a retomada econômica.
E se a economia tenta precificar o conflito, o que tem tirado o sono dos analistas nesse momento é o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro em meio a tensão. O especialista em comércio internacional e professor da USP Celso Grisi disse que o conflito enfraquece o Brasil diante do mundo. “O presidente Bolsonaro foi estabanado ao tentar se aproximar de Putin. Não conquistou um amigo e fez muitos inimigos”, disse. A ação isolou ainda mais o Brasil da diplomacia mundial. “Isso reforça que nosso presidente não é muito bem elaborado intelectualmente.”

O cientista político e professor de Relações Internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV) Oliver Stuenkel disse que o caminho para amortecer a imagem de Bolsonaro ao lado de Putin dias antes do início do conflito é deixar clara sua posição perante aos fatos. “O Brasil terá de se posicionar de forma clara.

Tradicionalmente, o País adota postura neutra, mas agora tem de se manifestar diante da gravidade da crise.” No entanto, na manhã da quinta-feira, Bolsonaro conversou com apoiadores e não comentou sobre a questão russa. Membros do Itamaraty confirmaram que o ele deve ser mais claro ao condenar a postura da Rússia, postura similar à que tomou o vice-presidente Hamilton Mourão ao garantir que o Brasil “não está neutro, e condena o episódio”. Essa subida de tom vem depois de embaixadas brasileiras na Europa terem pedido um posicionamento mais claro do governo brasileiro, o que, no Brasil de hoje, pode ser mais problemático que o silêncio.