Após ir para a França, fugindo da Guerra Civil espanhola, a família de Amalia Romero conseguiu erguer um novo lar na costa sul francesa, com vista para o Mediterrâneo.

Mas hoje, o mar corrói gradualmente seu refúgio em uma região costeira que se tornou vulnerável ao impacto das mudanças climáticas.

“É um destino cruel depois de termos devotado todos os nossos esforços, toda a nossa vida, a erguer um teto sobre a cabeça na nossa família”, disse Romero.

Em 1939, ela participou do êxodo – ou Retirada – de cerca de meio milhão de espanhóis, que fugiram das forças do ditador, o general Francisco Franco, e cruzou a fronteira com a França, onde muitos acabaram inicialmente em campos de concentração.

Hoje com 94 anos, esta mulher alegre e determinada, que trabalhou nas indústrias pesqueira e agrícola, falou com a AFP em sua casa, construída em 1956 na praia de Vias, cerca de 300 km ao norte da cidade de Barcelona, na Espanha.

Além da vista panorâmica para o oceano, a varanda da sala de estar, no primeiro andar da casa, permite avistar os Pirineus.

Libertados dos campos franceses, seus familiares conseguiram comprar este pedaço de terra, na época coberto de vinhas, e ali construíram uma nova vida.

Na época, Romero dizia que “as dunas (em frente à sua casa) costumavam se inclinar suavemente em direção ao mar”.

Os pescadores tinham espaço de sobra na praia para erguer suas cabanas, puxar seus barcos para a areia e estender suas redes, acrescenta ela, lembrando nostalgicamente de seu “paraíso perdido”.

Desde então, uma grande porção de terra foi “comida pelo mar” e o jardim agora se depara com o açoite das ondas.

O mar regularmente arrasta quebra-mares, paredões, pontes e outras medidas adotadas ao custo de milhões de dólares para recriar artificialmente a praia.

Viúva e mãe de quatro filhos, que agora vive sozinha, Romero diz que “demorou algum tempo” para perceber que o Mediterrâneo estava avançando mais e mais.

– ‘Muito sério’ –

“Nos anos 1990, de repente tudo ficou claro para nós depois de algumas ondas fortes, mas já era bastante sério”, relatou.

A praia de Vias fica em um trecho de aproximadamente 180 km, conhecido por sua costa arenosa e baixa, que é “portanto, extremamente vulnerável à erosão, à inundação costeira e ao aumento do nível do mar”, explicou o geógrafo Alexandre Brun, professor da Universidade Paul-Valery, em Montpellier (sul).

No mundo todo, o nível do mar subiu cerca de 15 centímetros no século 20 e a elevação está se acelerando, segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC).

Até 2050, mais de um bilhão de pessoas como Romero estarão morando em regiões costeiras particularmente vulneráveis a inundações ou a eventos climáticos extremos.

Enquanto a própria existência de algumas ilhas, sobretudo no Oceano Pacífico, está ameaçada, a Europa também não foi poupada.

A França está entre os países mais afetados, juntamente com a Holanda e a Bélgica, entre outros, disse Goneri Le Cozannet, especialista em risco costeiro e mudanças climáticas do Serviço Geológico Francês, que colabora com os relatórios do IPCC.

Dez por cento da população da França continental, ou 6,2 milhões de pessoas, vivem em comunidades costeiras, segundo cifras do Ministério da Transição Ecológica.

– Negação e turismo de massa –

A erosão já afeta um quarto da costa da França continental, segundo o ministério do Meio Ambiente.

Cerca de 1,4 milhão de pessoas e 165.000 construções estão ameaçadas pela inundação costeira, alerta a pasta.

Locais históricos correm o risco de ser engolidos – joias como a Caverna de Cosquer, perto da cidade portuária de Marselha, com suas pinturas rupestres de peixes, pinguins e focas, já está parcialmente submersa.

Áreas de beleza natural também estão ameaçadas, como os pântanos de Camargue, ao sul, com fauna e flora diversas e os famosos flamingos cor-de-rosa.

O aquecimento global aumenta a força e a frequência de tempestades que fragilizam a faixa costeira, o que ficou tragicamente demonstrado com a poderosa tempestade Xynthia, que ao longo da costa Atlântica matou 47 pessoas na França em fevereiro de 2010.

No entanto, assim como em um número de países onde o litoral está ameaçado, a negação tem sido comum.

O estado constrói há muito tempo centenas de milhares de casas, portos, negócios e infraestrutura na costa sul em áreas “que se revelaram frágeis, baixas e arenosas”, relata o geógrafo Brun.

Embora historicamente, acrescenta, os humanos evitaram se estabelecer perto da costa para evitar mosquitos e proteger a si próprios da invasão e da intensidade das tempestades.

A igreja em pedras pretas vulcânicas de Vias, construída nos séculos 14 e 15, na cidade original, por exemplo, fica no interior, mais de 2,5 km ao norte da praia de Vias.

Enquanto a viagem ferroviária ajudou a encorajar a construção dos primeiros resorts à beira-mar no século 19, nos anos 1960, o governo do então presidente Charles de Gaulle desenvolveu a economia costeira na região mediterrânea.

Grandes empreendimentos residenciais em concreto foram erguidos mais perto do mar, em locais como La Grande Motte para prover o turismo de massa “com a ideia de que pode-se controlar a natureza”, disse Brun.

Estas construções alteram as correntes oceânicas e a circulação de sedimentos, enquanto represas, que a partir do século 19 se tornaram mais comuns em rios, também reduziram o transporte de sedimentos para o mar.

– Migrantes climáticos? –

Por anos, os governos deram ordens “contraditórias”, acredita Brun.

Às vezes, pediam aos moradores para se afastarem da costa, o que é problemático em regiões com lagos ou próximos a rios que podem repentinamente transbordar.

Mas, de um lado, o Estado emite licenças de construção incentivando “um circo comercial que transforma as áreas na vizinhança imediata às praias em concreto”, visto como uma mina de ouro especialmente em cidades pobres como Vias, explica Brun.

“No fim, continuamos a cometer os mesmos erros”, lamenta.

Contatado pela AFP para fazer um comentário, o ministério da Transição Ecológica não respondeu.

Enquanto isso, autoridades locais eleitas estão divididas – conscientes do risco, mas também dos fortes vínculos que as pessoas têm com seu lugar no mundo.

“Transformar nossa população em migrantes climáticos é brutal. Estariam desistindo de sua história… A expropriação sempre deixa uma ferida”, disse à AFP o prefeito de uma cidade costeira no Mediterrâneo.

Por anos, associações e países dialogam sobre o encorajamento a construir edifícios mais ambientalmente amigáveis ao longo da faixa costeira, um conceito que captura a imaginação de estudantes de arquitetura como os de Montpellier.

Na Europa, no entanto, sua implementação permanece “experimental”, segundo o especialista em risco costeiro Le Cozannet.

Ele alertou que as tentativas de “reparar” a faixa costeira através da engenharia ainda eram privilegiadas, mas estarão condenadas no médio prazo “se não limitarmos as emissões de gases estufa”.

– ‘Minha vida é aqui’ –

Em Sete, uma antiga cidade portuária com canais a cerca de 30 km de Vias, a maior operação de preservação costeira do Mediterrâneo está em andamento desde 2013, ao custo de mais de 55 milhões de euros (US$ 65 milhões).

Ela consiste de um atenuador de ondas – tubos têxteis submersos cheios de areia – que visam a reduzir o impacto das ondas na costa.

Jean-Luc Romero, um dos filhos de Amalia, que dirige uma associação de moradores em Vias, disse que as autoridades deveriam levar em conta a experiência da população local, que conhece o mar.

Sua família agora deposita suas esperanças em novas redes que retêm a areia.

Ao capturar a areia trazida pela água, as redes visam a conter a erosão das dunas, explicou Dominique Michon, gerente da companhia, Able, que posicionou as redes na Baía Somme, no norte, e na Costa Opal.

Os resultados são encorajadores, segundo o estatal Centro para Estudos e Expertise em Riscos, Meio Ambiente, Mobilidade e Planejamento Urbano.

Enquanto um fundo nacional foi criado para ajudar as pessoas que enfrentam riscos de inundação, a família Romero se queixa de que nenhuma compensação esteja disponível para a erosão costeira, como os moradores do edifício Signal em Soulac-sur-Mer, oeste da França, sabem bem.

Construído a 200 metros da costa em 1967, o prédio agora corre o risco de colapsar sobre o Atlântico.

Após seis anos de luta, em novembro os moradores do prédio abandonado ganharam a princípio um acordo de compensação.

“Este é um caso excepcional e deveria permanecer assim”, disse na época o líder da região de Nouvelle-Aquitaine (sudoeste), Fabienne Buccio.

Amalia Romero espera conseguir permanecer em sua casa, onde quatro gerações de sua família viveram em um momento ou outro, e a passaram para seus filhos.

“Toda a minha família está aqui, nós não caímos do céu, fomos trazidos pela guerra”, afirmou.

Quando o vento uiva e as ondas batem, Romero, que está quase totalmente cega, “encontra refúgio” em seu quarto com vista para o interior.

Ela fecha as portas, põe uma música alta para, diz ela, “se defender do barulho angustiante”.