Para o líder da entidade que reúne os grandes laboratórios do País, a indústria nacional está na rota tecnológica para fabricar fármacos a partir de proteínas de células vivas. Eles podem ser o futuro do tratamento da Covid-19.

Cloroquina, ivermectina, azitromicina, medicamentos monoclonais… O receituário popular brasileiro ganhou novos termos desde o início da pandemia da Covid-19. Por trás deles estão laboratórios nacionais e estrangeiros que cumprem a tarefa de suprir a demanda de remédios que, em sua maioria, eram desconhecidos até então. Para o presidente da Grupo FarmaBrasil (GFB), Reginaldo Arcuri, a indústria tem cumprido com excelência a tarefa de manter o abastecimento do mercado, que chegou a quintuplicar em alguns casos. Segundo ele, a vacinação não torna os medicamentos desnecessários para o controle da pandemia.

DINHEIRO – Como a indústria brasileira de medicamentos tem administrado a imensa alta na demanda desde o início da pandemia?
REGINALDO ARCURI — Uma coisa que poucas pessoas perceberam é que não faltou remédio no Brasil. Isso porque tanto as empresas nacionais quanto as multinacionais fizeram um esforço enorme. Tivemos uma capacidade de reação fantástica, capaz de suprir o que o Brasil precisava e, principalmente, garantir o fornecimento de medicamos ao tratamento de pessoas que estavam em situação de maior risco. Então, mesmo com uma situação extremamente tensa e complexa, não existiu e não existe nenhum problema real nessa questão.

Não faltar medicamento é algo normal no Brasil?
Não é normal. O problema da falta de seringas, agulhas ou mesmo oxigênio mostra que cada segmento tem limites de produção. Em abril e maio do ano passado, quando as pessoas eram aconselhadas a ficar em casa se os sintomas da Covid-19 fossem leves, como tosse e febre, houve um aumento repentino de internações e intubações porque os que tinham o quadro de saúde agravado pela falta de ar já chegavam aos hospitais com os pulmões comprometidos. Com isso, as UTIs demandaram muito analgésicos e relaxantes potentíssimos para induzir o coma. Pacientes ficam mais de 15 dias desacordados. Além do aumento brutal da necessidade de medicamentos houve aumento de produção para atender à demanda graças a uma indústria muito bem estruturada.

Há espaço para ampliar ainda mais a produção, se isso for necessário?
Há, mas a capacidade instalada da indústria de medicamentos está hoje 100% ocupada. Muitas multinacionais estão tendo de importar também. A questão da vacina agora revelou a todos que o Brasil produz muito pouco dos chamados IFAs, os insumos farmacêuticos ativos, matéria-prima para produção de medicamentos e vacinas. Então, mesmo entre as fábricas brasileiras, houve a necessidade de importar esses insumos da China e da Índia. Imagine a complexidade dessas compras, da logística e da capacidade de gerenciamento dos estoques.

Por que nenhuma fabricante brasileira se tornou protagonista do combate à pandemia?
O que estamos vendo agora, com as vacinas, é que as empresas brasileiras serão chamadas para participar da solução. O que se tem demonstrado é que os medicamentos serão essenciais para o sucesso das vacinas. Os medicamentos serão complementares à vacinação e, depois de testados e aprovados, terão a possibilidade de curar a Covid. Esses medicamentos são, em parte, os que têm anticorpos monoclonais e os antivirais, que nossas empresas já fabricam ou estão começando a fabricar. O Brasil tem uma indústria em condições de responder a desafios tão malucos como esse agora. A indústria chegou a quintuplicar a produção no período crítico, de abril e junho, quando se apostava na cloroquina, na ivermectina. A Anvisa teve uma enorme capacidade de reagir positivamente desenvolvendo normas que atendessem à emergência, sem perder o controle e o monitoramento da indústria.

“Nunca construímos nenhuma hipótese se o medicamento é bom ou ruim. As conclusões são dos pesquisadores. Quem decide se vai recomendar ou distribuir ao povo brasileiro, é o Ministério da Saúde” (Crédito:Claudio Reis)

Por que a Anvisa não demonstrou essa mesma agilidade na liberação da vacina?
Sinceramente, não houve atraso da Anvisa. As normas agilizaram, por exemplo, poder trocar o fornecedor do princípio ativo ou aumento dos lotes de produção. O processo de registro é longo, como é também no FDA [equivalente à Anvisa nos Estados Unidos]. As vacinas não tinham registro em nenhum lugar do mundo. Por isso foi aprovado o uso emergencial sem que houvesse todos os estudos necessários.

Com mais de 1 mil mortes por dia no Brasil, a Anvisa não deveria ter sido mais pró-ativa?
A Anvisa não sai por aí catando documentos das empresas. As fabricantes precisam requerer a autorização e apresentar os requisitos. Então, o que demorou foi a apresentação do uso emergencial das vacinas. Nesse ponto, como desconheço, não posso dizer quais são as razões dos atrasos.

A agência agiu sob influência política?
Não tenho nenhuma informação privilegiada sobre isso. No domingo passado, quando a Anvisa liberou as vacinas, ela demonstrou que agiu tecnicamente, como se espera de um órgão de Estado. Por isso que os diretores da Anvisa têm mandatos aprovados pelo Senado. Mesmo o presidente da agência, que sofreu críticas por participar de um evento com o Bolsonaro sem máscara, deixou bem claro que não existe, até o momento, tratamento para curar a Covid. A Anvisa também fez elogios ao ex-ministro Henrique Mandetta. Então, não parece que houve comportamento desviante do que se espera de uma agência de padrão mundial.

Se a Anvisa reconhece que não há tratamento para a Covid, afirmação em linha com cientistas do mundo todo, por que as fabricantes, mesmo sabendo que remédios como cloroquina e ivermectina não funcionam para a Covid-19, não se manifestaram contrárias ao consumo dessas drogas?
Não há comprovação científica de quê? Existe comprovação científica que a cloroquina funciona para o que consta da bula dela. É eficaz. A bula da ivermectina também mostra para que é indicada. A indústria não saiu por aí dizendo que a cloroquina é ótima para nada além do que está na bula. A indústria não pode fazer isso.

Mas esses medicamentos têm sido usados para combate à Covid, doença que não está descrita na bula, indicados até pelo presidente Bolsonaro…
Não cabe à indústria prescrever medicamentos. Apenas os médicos podem fazer propaganda ou recomendar o consumo “off label”, ou seja, fora da bula. Não podemos dizer que funciona, nem que não funciona. O Viagra não foi desenvolvido para disfunção erétil. Foi criado para tratamento de problemas coronarianos. Durante o uso, foi-se verificando que o medicamento gerava outros efeitos. Então, do mesmo jeito que a indústria não pode prescrever, a indústria não pode sair por aí dizendo que todos estão errados. É uma questão lógica.

As empresas não podem ser corresponsabilizadas pelo uso inadequado de medicamentos para vermes e malária? O chamado kit Covid é distribuído pela rede pública…
É uma questão legal. Não estamos tirando o corpo. De jeito nenhum. É uma questão do que podemos e do que não podemos fazer. Nunca construímos nenhuma hipótese se o medicamento é bom ou ruim. As conclusões quem tiram são os pesquisadores. Quem decide se vai recomendar ou distribuir ao povo brasileiro, é o Ministério da Saúde. O que fizemos, junto aos principais hospitais, como Albert Einstein, Oswaldo Cruz, Sírio-Libanês, foi oferecer medicamentos e placebos para que os médicos pudessem conduzir seus estudos. Depois disso, chegou-se à conclusão que não foi possível detectar diferenças no tratamento. Foi inconclusivo. Essa foi a colaboração da indústria.

“No domingo (17), quando a Anvisa liberou as vacinas, ela demonstrou que agiu tecnicamente, como se espera de um órgão de Estado” (Crédito:Divulgação)

Então, não há insegurança jurídica nessa questão?
Se a gente fizer qualquer coisa fora da norma, podemos ter os registros cassados ou mesmo responder por crime hediondo. Então, não existe qualquer possibilidade de um fabricante de medicamento fazer algo por conta própria. Andamos na linha o tempo todo. Somos hiperregulados.

Qual é a garantia de que esses novos medicamentos em desenvolvimento pela indústria não serão mais uma espécie de cloroquina?
Quando o ex-presidente americano Donald Trump teve Covid, tomou um coquetel de medicamentos monoclonais. São medicamentos de altíssima tecnologia e com muitos estudos sérios em andamento. O que parece que vai dar resultado é essa rota tecnológica, dentro de um prazo de mais ou menos um ano. As empresas brasileiras já começaram a fabricar esses produtos e muito diferente de se produzir fármacos de síntese química. O remédio de anticorpo monoclonal é produzido a partir de proteínas de células vivas. É algo diferente, de primeira linha. Aí entra uma questão fundamental, que e a lei de patentes.

Muitos laboratórios dizem que essa lei no Brasil desencoraja novos investimentos…
Sim. Precisamos ter prazos fixos e conhecidos, não móveis, de quanto tempo dura uma patente. É o polêmico parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial. Hoje, a lei de patentes é um desastre para País. A capacidade de desenvolver moléculas novas precisa deve estar amparada por uma lei igual a que os outros países têm.

Foi essa lei que fez com que multinacionais fossem embora?
A decisão de fechamento de multinacionais como Roche e Eli Lilly se explica pelo modelo de negócios delas, não só pelo ambiente de negócios. Mas temos que aprimorar a lei. Temos excelentes cientistas e empresas. Precisamos ter foco e incentivar a inovação. A lei de propriedade industrial não pode fazer essa bagunça que está fazendo. Só prejudica o povo brasileiro.