O ano de 2002 começou mais cedo, com data e horário marcados, para o executivo Maurício Novis Botelho, presidente da Embraer, quarta maior fabricante de aviões do mundo. O réveillon para ele ocorreu em 28 de setembro de 2001, exatos 17 dias após dois aviões seqüestrados pelos adeptos de Osama Bin Laden colocarem abaixo as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. O atentado abalou o mundo, jogou a economia global em recessão e lançou o mercado de aviação civil (fabricantes inclusive) na mais profunda crise de sua história.

Por isso, nas duas semanas seguintes, uma força-tarefa
formada por executivos da empresa saiu pelo mundo visitando clientes. O próprio Botelho colocou a pasta debaixo do braço, enfiou o passaporte no bolso e foi conversar com dois deles. Ao final do périplo, ele tinha em suas mãos um retrato fiel do que seria o mercado nos próximos três anos e, a partir daí, redesenhou ponto por ponto o plano de ação de sua companhia. Assim, no dia 28 de setembro, às 17 horas, Botelho reuniu a imprensa para anunciar uma série de medidas para enfrentar a crise. As encomendas de aeronaves foram reduzidas de 205 para 132 em 2002. Cerca de 1,8 mil postos de trabalho foram cortados. Em contrapartida, todas as metas estratégicas foram mantidas. E foram duas delas que se tornaram a marca registrada da Embraer em um ano que prometia ser catastrófico: a inauguração da fábrica de US$ 150 milhões em Gavião Peixoto, no interior de São Paulo, e o acordo com a Avic II para a produção de aviões na China. A agilidade na decisão, logo após 11 de setembro, foi fundamental para que a Embraer mantivesse, depois de uma breve turbulência, seu vôo ascendente no mercado internacional. ?Neste setor quem anda devagar voa?, brinca Botelho. ?Por isso, a flexibilidade é a chave da competitividade. Ela nos permitiu enfrentar a crise com sucesso.?

 

Botelho conduziu a Embraer através de um ano carregado de nuvens pesadas ? e saiu dele com um balanço no azul e expectativas de retomada do crescimento. Só por isso já estaria credenciado para se tornar o Empreendedor do Ano na categoria indústria da DINHEIRO. Mas Botelho deu ainda um outro passo importante. Mais do que nunca, a Embraer, em parceria com a francesa Dassault, está próxima de se sagrar vencedora da licitação de US$ 700 milhões das Forças Aéreas Brasileiras (FAB) para a compra de pelo menos 12 jatos militares. Não se trata apenas do reforço no caixa da companhia em um momento particularmente difícil do mercado mundial. Com a vitória na concorrência, a empresa brasileira poderá absorver a tecnologia de jatos supersônicos. Isso a credenciaria para disputar o filé mignon do mercado de defesa militar, estimado em US$ 350 bilhões por ano.

A Embraer enfrenta lobbies poderosos para ingressar nesse clube. Não chega a ser uma novidade para Botelho. ?Essa é a normalidade do setor?, diz ele. ?É uma briga de foice em sala escura.? Os embates entre a empresa e sua maior concorrente, a canadense Bombardier, já se tornaram um assunto recorrente nos jornais e no dia-a-dia do Itamaraty. No mês passado, um general americano barrou a compra de 24 aviões de combate Tucano pelas Forças Armadas da Colômbia ? e desta vez foi tudo às claras, com uma carta oficial assinada e entregue ao governo daquele país. Logo depois, foi a vez da pressão canadense adiar a compra pelo governo da Polônia de 21 jatos ERJ da Embraer.

Com a casa em ordem, a Embraer investiu maciçamente em tecnologia e formação de pessoal. Hoje, possui 12 mil funcionários, o dobro do número de sua época de estatal. A produtividade saltou de US$ 40 mil por funcionário para US$ 260 mil por funcionário. ?É um índice melhor do que de certas empresas canadenses?, cutuca ele. A idade média do quadro de pessoal é de apenas 31 anos. ?Ando pelo corredor e vejo o pessoal com faca nos dentes, pronto para a luta?, diz. Um dos principais estímulos é um programa de remuneração vinculada a metas pré-estabelecidas. No ano passado, funcionários do chão de fábrica conquistaram um bônus equivalente a seis salários mensais. ?Isso significa 50% a mais nos ganhos anuais do empregado?, compara Botelho.

 

Aos 60 anos, Botelho não aceitou o papel clássico de presidente de uma empresa do porte da Embraer. Desde o primeiro momento, tornou-se uma espécie de caixeiro viajante, que percorre o mundo atrás de clientes e parceiros. A cada ano, ele embarca 25 vezes para viagens ao exterior. Em muitas delas, o tempo de vôo é maior do que o próprio período de estadia, como ocorreu na semana passada na China, quando ele foi assinar o acordo com a Avic II. Alguns pequenos truques o ajudam a enfrentar o cansaço. Sempre janta antes de entrar no avião. Assim que se senta na poltrona, coloca a máscara e os protetores de ouvido oferecidos pelas comissárias e dorme até que o trem de pouso toque na pista do aeroporto. Quando o deslocamento é doméstico, faz questão de voltar para casa no Rio de Janeiro, onde vive com a mulher e três filhos. Botelho não gosta de dizer que conhece o mundo inteiro, como suas constantes viagens insinuam. ?Sou um grande especialista em aeroportos, hotéis e escritórios?, diz. E, pelo que indicam os resultados da Embraer, um especialista em vender aviões mundo afora.

 reação não poderia ser diferente diante de uma empresa com a história da Embraer. No curto espaço de sete anos, a companhia saiu da UTI para se tornar uma das mais pujantes participantes em seu setor de atuação. Nos primeiros nove meses do ano, a receita líquida atingiu R$ 4,9 bilhões, enquanto o lucro chegou a R$ 530,6 milhões. Atualmente, sua carteira soma 148 aeronaves para 2003 e outras 155 para 2004. Trata-se de uma fortuna estimada em US$ 23 bilhões que seriam faturados pelos demais fabricantes se a Embraer não tivesse saído do atoleiro de anos atrás. É, os concorrentes não poderiam mesmo estar felizes.

Botelho tem muito a ver com essa virada. Quando assumiu o manche, em 1995, logo após a privatização, encontrou uma organização esfacelada, vítima dos males típicos de uma estatal. A cada mês apenas uma aeronave saía das linhas de montagem. O faturamento era de US$ 240 milhões, não cobria sequer o prejuízo de US$ 330 milhões. As perspectivas não davam refresco, pois havia apenas US$ 170 milhões de encomendas. As dívidas somavam
US$ 400 milhões. A estrutura era envelhecida. Cerca de 80% do pessoal tinha mais de 10 anos de casa. ?As promoções não eram feitas por mérito ou desempenho?, conta Botelho. ?Eram utilizadas como forma de dar aumento salarial e driblar as restrições impostas aos orçamentos da estatal.?

 
Festa em Gavião Peixoto: Nova fábrica da companhia exigiu investimentos de US$ 150 milhões  

Com uma semana de trabalho, Botelho chamou representantes dos sindicatos. Colocou-os em um círculo e detalhou a situação da companhia. E fez uma proposta: corte de 10% nos salários, demissão de 600 pessoas e instituição do banco de horas, o que significava, na prática, o não pagamento das horas extras. Um dos sindicalistas levantou-se e disse: ?Doutor, eu não entendo de números. Gostaria que um economista nosso analisasse esses relatórios.? Botelho aceitou. A seguir, exigiram que as mesmas restrições fossem válidas para a diretoria. Botelho aceitou. E a última reivindicação: as propostas deveriam ser aprovadas em plebiscito pelos próprios funcionários. Botelho aceitou. Na votação, o ?sim? levou a melhor. Com o sinal de boa vontade por parte dos empregados, ele recorreu aos acionistas, o banqueiro Júlio Bozzano e os fundos de pensão Previ e Sistel. Deles, arrancou US$ 520 milhões para capitalizar a companhia. Tempos depois, atraiu os franceses da Dassault e lhes vendeu 20% do controle da companhia.