Antes de visitar a fábrica da QuickFood em San Jorge, uma pequena cidade argentina da província de Santa Fé, o engenheiro industrial Gustavo Kahl, 54 anos, alerta: “Estamos num processo de migração que ainda vai durar alguns meses. Vocês poderão ver o logotipo da BRF nos aventais dos funcionários, em algumas paredes ou, até mesmo, nos pacotes de carne que serão despachados”, diz. Faz sentido. A Marfrig, uma das principais companhias de carne bovina no mundo, acabara de adquirir 91,9% da QuickFood, que pertencia à rival brasileira BRF. O negócio, finalizado em janeiro, custou US$ 54,9 milhões. Agora, a ideia é alimentar o potencial de exportação no país vizinho. “Temos várias formas de crescer aqui. Uma delas é aumentar a capacidade de abate e desossa das unidades que temos. Outra é maximizar as operações de determinados produtos”, diz Miguel Gularte, CEO da operação América do Sul da empresa.

A Marfrig assumiu as três plantas da QuickFood. Além da unidade em San Jorge, há operações em Barradero e Arroyo Seco. Juntas, as fábricas têm capacidade para abater 620 cabeças de gado por dia e processam mais de 6 mil toneladas mensais de produtos como hambúrgueres, salsichas, embutidos e vegetais congelados. A empresa ainda mantém uma unidade em Villa Mercedes, província de San Luis. A compra da QuickFood foi o primeiro grande investimento no país vizinho após a venda de três unidades frigoríficas e uma operação de confinamento da Marfrig para a Black Bamboo Entreprises, do grupo chinês Foresun. A negociação, que ocorreu em 2016, movimentou cerca de US$ 75 milhões em valores da época.

Integração: Gustavo Kahl (à esq.), que comanda a empresa na Argentina, passou pela Cargill e JBS. A carne produzida no Brasil (à dir.) hoje vira hambûrguer no país vizinho

Voltar a investir na Argentina é uma aposta de longo prazo. O agronegócio no país enfrentou períodos de estiagem, causados pelos governos do casal Nestor e Cristina Kirchner, mas dá sinais de retomada. Para controlar o mercado e fortalecer o consumo interno, os Kirchner sobretaxaram as exportações de produtos agropecuários no fim dos anos 2000. A estratégia não foi bem-sucedida. O consumo estagnou, a inflação galopou e as exportações despencaram. O rebanho foi reduzido drasticamente: passou de 57,5 milhões em 2008 para 47,9 milhões em 2013. Com a posse de Mauricio Macri, em 2015, os números ascenderam.

No ano passado, o estoque de gado atingiu 53,9 milhões de cabeças, algo em linha com dados de dez anos atrás. O atual presidente retirou os impostos à exportação de carne bovina. “A expectativa é de que a Argentina volte forte para o mercado mundial do produto, sendo um competidor de peso para o Brasil, mas isso será um processo lento”, diz Alcides Torres, analista da Scot Consultoria. O francês Alain Martinet, conselheiro da Marfrig desde 2009, que já dirigiu as operações da empresa na Argentina, confirma essa tendência: “Estamos analisando a retomada. Hoje, a nossa capacidade de abate [na unidade de San Jorge] está em cerca de 600 cabeças por dia. A ideia é elevar isso para 800.”

Entressafra: O Frigorífico Patagonia, da Marfrig, é o maior produtor de cordeiros no Chile. Localizado na Terra do Fogo, a operação abate 2 mil animais por dia, entre janeiro a maio (Crédito:Marcio Cabral / Biosphoto)

Com faturamento de US$ 300 milhões em 2018, a QuickFood passa agora por um momento de reestruturação. Descendente de austríacos, o portenho Gustavo Kahl lidera essa empreitada. Em janeiro, a integração da Marfrig com a empresa argentina deu lugar a uma companhia de 2,3 mil funcionários, entre a equipe administrativa e a área industrial. Hoje, 2,1 mil pessoas trabalham na operação. Para fabricar o icônico hambúrguer Paty, que tem presença de mercado avaliada em 56% na Argentina, a Marfrig está deixando de usar somente a carne produzida pela QuickFood. A ideia é que, com o passar do tempo, 100% dos bovinos abatidos no frigorífico de San Jorge sejam destinados à exportação, principalmente para China e Europa. “O fundamental é aproveitar toda a estrutura da Marfrig na América do Sul para impulsionar as nossas marcas na região”, afirma Kahl. “Hoje, 95% do que produzimos ainda é para o mercado interno.”

Boa parte da matéria-prima dos hambúrgueres vendidos na Argentina já vem de terceiros e de algumas unidades da Marfrig no Brasil. Durante uma visita à fábrica de San Jorge, no início deste mês, foi possível notar que parte da carne que virou hambúrguer Paty naquela semana veio do abatedouro de Bataguassu (MS). Segundo Gularte, a estratégia é “agregar valor”. Vender os cortes do dianteiro bovino para a QuickFood rende mais à empresa do que comercializá-los no mercado brasileiro ou exportá-los ao Oriente Médio. Com qualidade reconhecida, a carne argentina deve retomar o protagonismo no comércio exterior. Por isso, a Marfrig também prevê novidades para a planta em Villa Mercedes. A empresa brasileira quer ampliar a capacidade de abate diária da operação de 750 bovinos para 850. Atualmente, 22% da carne bovina produzida na Argentina é destinada para o mercado externo – as exportações representam 38% em receita.

Operação Chile: Mariano Pabón comanda a empresa no país desde 2007 (Crédito:Fernando Martinho)

Para avançar na quantidade de carne bovina exportada, os hermanos podem se inspirar no exemplo de outro vizinho: o Uruguai. Com um modelo de negócio que não depende de uma capacidade de produção intensiva e que preconiza o bem-estar dos animais, com criação de gado ao ar livre – em condições naturais, terra fértil e água de rios e córregos –, o país ganhou a preferência dos mercados mais exigentes. Hoje, 70% do que é produzido lá é exportado para os Estados Unidos, China e União Europeia. “Dizem que o nosso gado é o mais folgado do mundo. Temos dois campos de futebol para cada animal”, conta Marcelo Secco, CEO da operação uruguaia da Marfrig. Com 3,3 milhões de habitantes, a pequena nação conta com 12 milhões de cabeças de bois e é o país mais carnívoro do mundo – o consumo anual é acima de 60 quilos por habitante. Em 2018, as exportações uruguaias de carne bovina renderam US$ 1,6 bilhão ao país.

Fim do mundo Se a exportação ganha força na Argentina e no Uruguai, o mesmo não acontece no Chile. Desde 2006, a Marfrig tem dois modelos de negócios no país. Um deles é voltado à importação e distribuição de alimentos no mercado interno. O outro é uma planta para abate e desossa de cordeiros. Quem lidera a operação local desde 2007 é Mariano Pabón, que conhece o fundador e atual presidente do conselho de administração da empresa, Marcos Molina, desde 1996. Para ele, só existe um problema. O Frigorífico Patagônia, responsável pelo abate dos cordeiros, fica na Terra do Fogo, sul do Chile, próximo à Antártida. “Estamos no fim do mundo. Depois da nossa planta, não há mais nada. Só mesmo o Marcos para ter uma visão empreendedora dessas e abrir uma planta na Terra do Fogo”, brinca Pabón.

A unidade abate dois mil cordeiros por dia, entre janeiro e maio, e exporta 95% da produção para regiões como China, União Europeia, Estados Unidos, Israel, Rússia e Oriente Médio. Além disso, a empresa está investindo US$ 5 milhões para ampliar um dos centros de distribuição para a armazenagem de alimentos em Santiago. A ideia é abastecer a cadeia local, dominada pelas redes supermercadistas dos grupos Cencosud, Falabella e Walmart. Hoje, são cinco centros de distribuição no país. Apostar na diversificação dos negócios é uma característica que fez de Marcos Molina um grande empreendedor e que alçou a Marfrig ao patamar de uma das maiores empresas de carne bovina do mundo.