A cada pessoa não negra assassinada no Brasil, 2,7 negros são mortos. Os negros são 75,7% das vítimas de homicídio. E essa vergonhosa proporção tem crescido: em uma década, de 2008 a 2018, a taxa de negros assassinados aumentou 11,5%. No mesmo período, os homicídios de não negros tiveram queda de 12,9%. Os dados estão no Atlas da Violência 2020, divulgado em agosto pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Se alguém tem alguma dúvida sobre o racismo no País, é só olhar os números da violência, porque traduzem muito bem o racismo nosso de cada dia”, afirmou a diretora-executiva do Fórum, Samira Bueno, no lançamento do Atlas. O levantamento é feito com base no Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde.

Se os dados parecem frios e impessoais para narrar tragédias humanas, a violência provocada pela desigualdade racial no Brasil não é apenas estatística. Ela tem rosto, nome e sobrenome. João Alberto de Freitas, 40 anos, homem negro, pai de quatro filhos, trabalhava como soldador. Foi espancado até a morte por seguranças de uma loja da rede de supermercados Carrefour, em Porto Alegre, na quinta-feira (19). Era véspera do Dia da Consciência Negra. A morte de João Alberto escancarou uma realidade que nos envergonha e entristece. A ela se seguiu outra, igualmente inaceitável: a admissão à polícia, por um ex-fiscal, de que a violência contra clientes e suspeitos de furto ou de “causar confusão” dentro da loja era autorizada pela gerência. Detidos, os seguranças Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva, policial militar que fazia um “bico” no momento da agressão seguida de morte, recorreram ao direito constitucional de não prestar depoimento. Na terça-feira (24), a fiscal do Carrefour Adriana Alves se entregou à Justiça. Ela é acusada de ameaçar testemunhas da agressão.

SILÊNCIO À tragédia da morte seguiu-se a inépcia do Carrefour em lidar com as consequências de suas práticas. A empresa, que já possui um histórico de denúncias de abusos e truculência (leia no quadro outros casos dramáticos), não foi capaz de assumir sua culpa. A direção silenciou enquanto um vídeo mostrando a ação letal dos seguranças circulava por todo o mundo. Para o especialista em valor de marca Eduardo Tomiya, CEO da consultoria TM20 Branding, “a maior falha do Carrefour nesse trágico episódio foi a demora em assumir a responsabilidade, tentando atribuir a culpa à empresa terceirizada de segurança Vector”.

Em nota divulgada à imprensa, além de lamentar a morte de João Alberto, o Carrefour informou que adotaria “as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso. Também romperá o contrato com a empresa que responde pelos seguranças que cometeram a agressão.” Segundo Márcio Correia, sócio da JGP, o Carrefour sabe o quão crítica é a operação de segurança nas lojas. “Quando você contrata uma empresa terceirizada, tem que internalizar pelo menos uma parte do treinamento”, afirmou. “Descobrimos que o Carrefour faz 10 mil Boletins de Ocorrência por ano. A empresa tem conhecimento desses eventos.”

A admissão de culpa, porém, teve de partir do presidente mundial do Grupo Carrefour, Alexandre Bompard. No início da noite de sexta-feira (20), o executivo francês divulgou mensagem em português pela rede social Twitter: “Meus valores e os valores do Carrefour não compactuam com racismo e violência”. Ele descreveu as imagens do assassinato como “insuportáveis”. Dono de 10% das ações do Grupo Carrefour e integrante do conselho de administração da empresa na França, o empresário Abílio Diniz disse que ficou “profundamente triste e indignado”, com o que definiu como “uma enorme brutalidade”.

Os erros do Carrefour causaram uma reação em cadeia por todo o País — e até no exterior. Uma onda de protestos tomou várias capitais ao longo do final de semana. Em São Paulo, manifestantes promoveram quebra-quebra e houve um princípio de incêndio em uma das lojas. Do ponto de vista institucional, a perda foi bem maior. O Carrefour foi desligado da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, que reúne 73 empresas e da qual era signatário. Um grupo de 12 fornecedores da rede, entre elas Danone, Heineken, Nestlé, JBS e Pepsico, anunciou na segunda-feira (23) uma aliança com a promessa de combater o racismo estrutural no País. Sem a presença do Carrefour. O documento assinado pelo grupo é enfático: “O primeiro passo é assumirmos a realidade do racismo e admitirmos que ainda ocorrem diariamente atitudes que perpetuam o preconceito, a exclusão, as desigualdades e a violência. E, por isso, precisamos fazer mais”. O jornal francês Le Monde escreveu que o Carrefour tem a imagem “manchada de sangue.”

Eric Piermont

“Meus valores e os valores do carrefour não compactuam com racismo e violência. Foi uma enorme brutalidade” Alexandre Bompard presidente global do Carrefour.

A imagem pessoal do presidente do Carrefour Brasil, o francês Noël Prioux, também ficou abalada. Ao pedir desculpas pelo assassinato, em um pronunciamento na TV, ele afirmou não compreender como aquilo que ocorrera devido à sua condição de “homem branco e privilegiado”. Prioux é um dos entrevistados do livro A Empresa Antirracista, de Maurício Pestana, colunista do site da DINHEIRO. O livro lista iniciativas de grandes corporações para combater o racismo. Depois do episódio, a Ediouro, responsável pela publicação, decidiu recolher os exemplares.

O mercado, evidentemente, reagiu mal. As ações caíram 5,35% na segunda-feira (23), para R$ 19,30 fazendo com que o valor de mercado recuasse R$ 2,2 bilhões, para R$ 38,3 bilhões. Para o analista da Ativa Investimentos Ilan Arbetman, o grande ponto agora é: quais serão as atitudes do Carrefour e qual será a reação do mercado? “Esse é um capítulo importante da governança corporativa no Brasil, que será escrito empiricamente, a partir da observação do que ocorrer”, afirmou. Para ele, as empresas terão de planejar melhor suas contratações de terceirizados, para fazer gestão melhor de riscos. “Também terão de investir melhor em treinamento, embora não seja a solução mais barata, para melhorar na precificação da companhia no mercado.”

Ana Paula Paiva

“O racismo é execrável e inaceitável e devemos combatê-lo sempre, com toda a força. Nosso país não vai avançar de verdade sem que isso seja endereçado de forma efetiva” Abílio Diniz dono de 10% do grupo Garrefour.

Avaliar impactos contábeis e perdas financeiras é o menor dos problemas do Carrefour neste momento, segundo especialistas em varejo ouvidos pela reportagem. Para tentar contornar a crise e minimizar futuras perdas, o Carrefour divulgou na quarta-feira (25) um detalhado plano de ação. Foi formado um “Comitê Externo de Livre Expressão sobre Diversidade e Inclusão para assessorar, de maneira livre e independente, o Carrefour Brasil em diretrizes e ações contra o racismo em todas as unidades da rede”. Fazem parte do comitê Rachel Maia, Adriana Barbosa, Anna Karla da Silva Pereira, Celso Athayde, Mariana Ferreira dos Santos, Maurício Pestana, Renato Meirelles, Ricardo Sales e Silvio Almeida. A primeira decisão do Comitê foi dar um claro sinal de respeito à morte de João Alberto Silveira Freitas. Na quinta-feira (26) todas as lojas da rede ficaram fechadas até as 14h, sendo reabertas com um minuto de silêncio. Todo o resultado de vendas dos dias 26 e 27 será revertido para ações orientadas pelo Comitê. O valor se soma à verba de R$ 25 milhões anunciada pela empresa anteriormente para viabilizar a adoção de uma política de tolerância zero ao racismo e à discriminação por razões de raça e etnia.

METAS O grupo anunciou que irá iniciar a transformação radical de seu modelo de segurança, internalizando as equipes das três lojas de Porto Alegre, “com orientação e apoio de organizações reconhecidas do movimento negro no combate a todo tipo de discriminação e de violência aos direitos humanos”. De acordo com a nota assinada pelo Comitê, haverá metas anuais para a formação e ascensão de pessoas negras em carreiras dentro do Carrefour, em diferentes áreas, além de metas para ocupação de cargos de liderança por pessoas negras.

As ações às quais a empresa se propõe são necessárias para o País e, evidentemente. deveriam ter sido adotadas antes da morte de João Alberto. Antes, também dos outros casos de violência já relatados. Ainda que nada possa corrigir o erro que levou à morte de João Alberto, o resultado pode significar um avanço na forma como as empresas lidam com o racismo no Brasil. E quem sabe assim as estatísticas que abrem esta reportagem poderão mudar de forma significativa ao longo da próxima década.