Na literatura clássica, um episódio envolvendo o rei e general Pirro, que comandava a região grega do Épiro, foi considerado um dos mais valiosos ensinos para líderes dos tempos que se seguiram. Apesar de vencer a batalha de Ásculo contra os romanos, em 279 a.C., o exército de Pirro foi dizimado. Na ocasião, ele teria questionado se a vitória, a esse custo, teria valido a pena. Desde então, o termo vitória de Pirro norteia situações em que ganhar não resulta, necessariamente, em algo bom para os vencedores.

Talvez a cruzada do ministro Paulo Guedes para aprovar a qualquer preço a reforma administrativa seja mais um caso de conquista pírrica. Entre as nove idas e vindas do texto no Congresso nasceu um projeto ruim, com dezenas de jabutis, efetividade mínima no curto prazo e pontos inconstitucionais. Valdir Simão, sócio do Warde Advogados, ex-ministro-chefe da Controladoria Geral da União (CGU), define o texto pré-aprovado como desastroso. “Ninguém ganha. E perde o cidadão, no resgate de seus direitos.”

O texto da Proposta de Emenda à Constituição 32, enviada pelo governo em setembro do ano passado, prometia levar para discussão no Congresso uma forma de diminuir as distorções e o sobrepeso do Estado. Reveria cargos, salários e benefícios para oferecer soluções mais condizentes com o mercado de trabalho contemporâneo. Na teoria, uma solução capaz de desafogar a situação fiscal da União e seus entes. Na prática, um texto que já nasceu com problemas crônicos. “A proposta era péssima. Não continha qualquer medida que pudesse ajudar na questão fiscal no curto prazo, atacava problemas inexistentes e não incluía membros do poder Judiciário e do Ministério Público”, disse Simão.

Nesse sentido, como aconteceu em praticamente todas as reformas propostas por Guedes, o Congresso pegou o caldeirão que veio e alterou substancialmente. “Mesmo assim, o projeto aprovado manteve os mesmos vícios da redação original, incluiu outros e não propôs qualquer medida para o aprimoramento da governança e para a melhoria dos serviços públicos”, disse o ex-ministro da CGU. Segundo ele, o texto aprovado na Comissão Especial por 28 votos favoráveis e 18 contrários aprofundou a desigualdade entre as diversas carreiras. “Faltou coragem para incluir os membros de poder e, com pouca discussão, definiu quais carreiras não podem ser tocadas”, afirmou. Para Simão, esse é um problema grave porque diversas carreiras não abarcadas “certamente irão judicializar essa discussão, trazendo mais insegurança jurídica e confusão para a gestão pública”.

NÃO SEM LUTAR Servidores prometem organizar passeatas contra as diretrizes atuais da reforma administrativa de Paulo Guedes. (Crédito:Alan Marques)

Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional das Carreiras de Estado (Fonacate), confirmou que até pessoas próximas ao Planalto admitem que não é aconselhável votar a PEC 32 como está. “A um ano do pleito, as pautas começam a tomar um novo peso”, afirmou. No Congresso, um novo bordão surgiu. “Quem vota não volta”, em uma menção à impopularidade da medida com o eleitorado. A Câmara sentiu o baque. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que pretendia votar o texto em setembro, jogou para o fim de outubro. No domingo (26), Guedes enviou a jornalistas explicações das mudanças vindas do Congresso, mas sem questionar o fato de muitas delas terem afrouxado as regras previstas pelo Executivo.

Segundo Fernanda Consorte, economista chefe do Banco Ourinvest, conversas que envolvem personagens desse processo em Brasília dão conta que o lobby para destravar essa questão é fortíssimo. “A percepção que a gente tem por aqui é que haverá tanta exceção que não necessariamente isso vai ser positivo para as contas públicas”, afirmou.

PREVIDÊNCIA Outro problema é o Artigo 37-A, que autoriza parceria com o setor privado em serviços públicos. Segundo Simão, outras formas poderiam ser adotadas para reduzir gastos, mas houve medo. “As carreiras de elite do governo federal, com salários de entrada notadamente altos poderiam ser revistas. Mas não há notícia que o governo trabalhe nessa questão”, disse a economista. “A PEC, é o desmonte da administração pública. Desestimula o ingresso na carreira pública e deteriora os serviços públicos.”

No entendimento de Cecilia Mello, que atuou por 14 anos como juíza federal no TRF-3 e é sócia do escritório de advocacia que carrega seu nome, a principal incerteza recai no regime previdenciário. “Ao que parece, apenas os cargos de Estado poderão ser enquadrados em Regime Próprio de Previdência Social.”. Nesse ponto, a advogada ressalta a inclusão, pelo substitutivo, da proibição de cassação de aposentadoria como hipótese de sanção administrativa. “Ao proibir a aplicação dessa sanção, a lei tira da esfera administrativa essa competência e deixa apenas para o Judiciário”, disse. Para ela, esclarecer essas questões é primordial para mensurar a eficiência da PEC.

Voltando aos ensinamentos do rei Pirro, um diálogo descrito por Plutarco, três séculos depois, alerta. “Se a vitória não conduz necessariamente à resolução de um conflito, a consolidação só ocorrerá com atitudes magnânimas, conciliatórias e plenas de conteúdo.” Em outras palavras, com tantas críticas, não vale a pena uma vitória a qualquer custo se depois dela não vier a resolução do conflito e nem se prezar o bem estar de todos, incluindo dos vencidos.

GUEDES E O DELÍRIO DE JUSCELINO

Dizem as más línguas que, quando assumiu o governo federal, em 1956, Juscelino Kubitschek foi tomado por um espírito de construtor. Se fosse uma criança, seria do tipo que coleciona blocos de montar. Como presidente do Brasil, criou um novo Distrito, pátios fabris e estradas. Essa era a receita para fazer o País avançar 50 anos em seus cinco anos de mandato. Agora, um ministro metido a arauto do liberalismo quer algo parecido. Privatizar estatais e empresas públicas centenárias, alêm de vender imóveis dos tempos do império. Tudo enquanto reforma o Estado, a Previdência e o sistema tributário.

Mas depois de tantas frustações em três anos de governo, Paulo Guedes resolveu transformar cinco anos em anos. Em um evento organizado pela International Chamber of Commerce (ICC), ele afirmou que as privatizações do Banco do Brasil e da Petrobras devem ocorrer em uma década. Correios e Eletrobras podem ser privatizadas antes, “a depender do andamento político”. Nas contas iniciais de Guedes, seria possível arrecadar R$ 1,29 trilhão com as privatizações, concessões em vendas. E mais R$ 1 trilhão com a nova Previdência em dez anos. E talvez isso nem seja uma má notícia.Já pensaram como o governo poderia lidar com a pandemia não detivesse o SUS? Ou a Eletrobras? Ou pela Petrobras?

Por isso Guedes não precisa sentir-se mal. Em seu sonho de Juscelino do século 21, o ministro da Economia esqueceu que a obra Kubitschek rendeu ao país um forte crescimento, mas fez a inflação saltar, o salário despencar, a dívida internacional subir e as condições humanas (em muitos aspectos) piorarem. Fatores que, poucos anos depois, levariam à eleição (e renúncia) de Jânio Quadros, colocariam a camiseta de comunista em seu vice João Goulart e culminariam no golpe militar de 1964.