Fatiar um projeto, enviar ao Congresso e isentar seus iguais. Esse tem sido o modus operandi do atual governo quando o assunto são reformas estruturantes. Na nova Previdência, no esboço das mudanças tributárias e, mais recentemente, na alteração das diretrizes do serviço público, estes pontos se tornaram padrão: fazer menos do que o prometido, deixar aos parlamentares o ônus (ou bônus) das alterações necessárias e ilibar os amigos do rei. Desses três processos, um tem se tornado um vício perigoso. Ao beneficiar setores ou categorias mais alinhadas com as diretrizes do Planalto, sejam militares, religiosos ou banqueiros, o governo corre o risco não apenas de conduzir reformas inúteis, mas de piorar o abismo que divide o direito e privilégio na sociedade brasileira no médio prazo.

Prova disso é que, no caso da reforma administrativa (que deveria atacar o sobrepeso do estado), os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além dos militares, não sofrerão alterações. Para o economista Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da Associação Contas Abertas, “é lamentável que os poderes nos quais se encontram o maior número de privilégios não tenham sido alcançados pela proposta”. A frustração não é sem razão. Segundo dados do Tribunal de Contas da União (TCU), o gasto com privilégios na iniciativa pública pode chegar a R$ 1 trilhão em dez anos. O ganho com a reforma administrativa ficaria muito abaixo disso: R$ 300 bilhões em uma década.

Bilhões daqui, bilhões dali. É assim que baila o topo do funcionalismo brasileiro. Nessa conta entram, por exemplo, R$ 4,7 bilhões gastos a cada 12 meses com o pagamento de auxílio-moradia de servidores dos Três Poderes. Também cabem gasto extra de férias na casa do R$ 1,5 bilhão, com recessos que variam entre 60 a 90 dias para parlamentares e juízes. Pode incluir ainda os R$ 3,8 bilhões do auxílio transporte. Mais R$ 2,9 bilhões do auxílio pré-escola, alimentação e refeição. E mesmo com todos esses benefícios, segundo o próprio TCU, ao menos 65% dos servidores do alto escalão dos Três Poderes têm algum valor extra atrelado a horas-extras, turnos estendidos ou duplicação de cargos.

A HORA DO CONGRESSO Davi Alcolumbree Rodrigo Maia receberam proposta de reforma e, mesmo prevendo mudanças no texto original, prometem dar celeridade ao projeto enviado pelo governo federal. (Crédito:Pedro Ladeira)

Entre os militares, a mistura entre o que é privilégio e o que é direito também encontra seu espaço na pajelança. Principalmente no momento em que um ex-capitão do exército ocupa o mais alto cargo do Executivo nacional. Prova disso é que o número de servidores militares no governo mais do que dobrou desde o início do mandato de Bolsonaro. Ao todo, mais de 6,1 mil (da ativa ou da reserva) ocupam cargos dentro do governo federal, todos acumulando seus proventos da carreira militar à nova função. Em 2018 – último levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o tema – dos quase 1,2 milhão servidores públicos federais, 377 mil eram militares. Só no Ministério da Defesa, dos 402 mil servidores, há quase 306 mil militares – número maior do que o total de servidores do Ministério da Educação: 303 mil. Em cifras, a folha de pagamento apenas dos fardados soma cerca de R$ 80 bilhões anuais, com crescimento médio de 12,5% ao ano desde 2012, ao passo que a arrecadação não variou mais do que 6% no mesmo período.

O resultado de tudo é um Estado generoso para poucos e asqueroso para muitos. Porque a dinheirama não chega aos serviços. Para na folha de pagamento. No poder Legislativo brasileiro, do orçamento anual de R$ 8,1 bilhões, 74% são despendidos com pessoas. No Judiciário, o orçamento anual é três vezes maior, perto de R$ 25 bilhões, com percentual parecido destinado à folha de pagamento.

REAÇÃO PRESIDENCIAL Questionado sobre a manutenção dos benefícios aos militares, o presidente Bolsonaro usou o argumento padrão da categoria. “Nós (militares) não temos hora extra, não temos Fundo de Garantia, não tem um montão de coisas. A estabilidade é com dez anos de serviço, não com três, tá certo?” O presidente deixou o Exército aos 33 anos, sem nunca atuar na economia real, com salário que superava em 66% o teto estabelecido pelo INSS para aposentados civis.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, de quem se esperava a Reforma Administrativa, defendeu, na quarta-feira (9), que o teto de salário no serviço público seja elevado (ainda que os salários de entrada caiam), como forma de reter talentos por meio de meritocracia. Segundo ele, a forma como se dá o teto hoje não reflete o desempenho dos servidores. “É uma distribuição quase socialista”, disse. Sobre a redução de R$ 300 bilhões em 10 anos com o funcionalismo, Guedes afirmou que essa cifra só se dará caso o Congresso não altere o texto enviado no início do mês ao Parlamento. Isso, no entanto, parece pouco provável. Primeiro, porque os próprios parlamentares afirmam não ter entendido certas partes da proposta. A senadora Kátia Abreu (PP-TO), que é vice-presidente da Comissão da Reforma Administrativa na Casa, por exemplo, recebeu com estranheza trecho da proposta que prevê extinção de órgãos públicos sem o aval do Congresso. “A PEC é importante, mas há pontos que são verdadeiras aberrações”, disse. “Criar ou dissolver órgãos sem a autorização do Congresso? Não acredito que isso passe dessa forma.”

Elza Fiúza

“A reforma administrativa é importante e precisamos discutir o tamanho do estado. Mas há várias aberrações nessa proposta” Kátia Abreu, Senadora (PP-TO).

REAÇÃO CORPORATIVA E se o Congresso pode resistir em alguns pontos, virá do funcionalismo público em geral (aquele que envolve professores e médicos, por exemplo) a maior resistência às mudanças. Para Max Leno, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), há questões problemáticas na proposta enviada, principalmente com o fim da estabilidade. “As pessoas esquecem que praticamente todo serviço tem um servidor público na ponta. Uma pessoa com salário inferior a R$ 5 mil e que ficará a mercê de mudanças de governo e ideologias”, disse Leno.

Para Carlos Curado, professor de macroeconomia, contas públicas e ex-ministro do TCU, na Constituição de 1988 o princípio da estabilidade estava atrelado a um trauma vindo da ditadura militar. “Entre 1964 e 1985, não havia previsibilidade. As pessoas eram demitidas, quando não presas, por qualquer ruído. Isso deveria ter sido mitigado com a estabilidade”, disse. Mesmo admitindo que o Estado brasileiro se deformou desde a promulgação da Constituição, ele defende que a estabilidade não seja revista. “Fui da Assembléia Constituinte e vi de perto essa discussão. A estabilidade garante o não aparelhamento do estado”. O que na prática não é verdade, quando esse aparelhamento ocorre com a legião de militares escalada por Bolsonaro, apenas para ficar num exemplo.

REGALIAS MANTIDAS Servidores militares terão seus benefícios resguardados, de acordo com a proposta do Governo. Categoria consome cerca de R$ 80 bi ao ano. (Crédito:Jarbas Oliveira)

Todas essas questões não devem passar incólumes, e a judicialização de alguns pontos parece certa, pelo menos é o que defendem interlocutores do Supremo Tribunal Federal (STF). Entre os assuntos que devem chegar primeiro às mãos dos ministros estão a possibilidade de ampliação do número de vagas que podem ser preenchidas por indicação nos Três Poderes e a possibilidade de o presidente excluir cargos e órgãos via decreto. Sobre o potencial de judicialização, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), disse que ela foi feita para ser aprovada. “Disseram que a proposta é leve demais. Mas não é leve demais, foi feita para ser aprovada, não para ser judicializada”. Para ele, o objetivo é aprovar o texto. “Não vamos fazer uma coisa que a gente ache que tem risco de judicialização, de paralisação, de debates que inviabilizem a sua aprovação. Vamos votar rapidamente a reforma administrativa na Câmara e no Senado este ano”.

Um nó, vale lembrar, que está restrito à esfera federal. Ainda fica de fora da reforma todo o contingente de funcionários públicos estaduais e municipais. São mais 11 milhões de servidores Brasil afora que, organizados pelo Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), prometem fazer um enfrentamento à altura dos privilégios que serão mantidos no alto dos Três Poderes. Uma reforma sem brilho, sem coragem e sem cacoete de transformadora – que já se traduz em manifestações corporativistas. E que parece entregar aos usuários do Estado o custo de sempre.

Alex Silva

“É lamentável que os poderes nos quais se encontram o maior número de privilégios não tenham sido alcançados pela proposta” Gil Castello Branco, Fundador do Contas Abertas.

Aos inimigos do rei, a lei

Apesar da política de beneficiar seus pares ser uma constante na política brasileira, a garantia de privilégios como política de estado remonta ao período em que os portugueses ainda estavam atracando em terras tupiniquins. Em 1513, o pensador italiano Nicolau Maquiavel já versava sobre o tema. Em sua obra O Príncipe, escreveu: “Aos amigos, favores. Aos inimigos, a lei”. Essa parece ser a máxima de um governo que protege aliados e suprime inimigos. A frase, segundo o pensador europeu, define a forma como um rei deve agir para se manter no poder, mas ignora a criação de antagonismos gigantescos e tensão crescente de uma sociedade dividida entre amigos e inimigos do mandatário.

No caso do Brasil, essa reforma meia boca (que reduz a um terço o potencial de uma reestruturação séria) só servirá para polarizar um País marcado pela divisão e por ideologismos. Ao atingir em cheio apenas os servidores da saúde, educação e seguridade social, a reforma renderá apenas R$ 300 bilhões em uma década e evidencia que a mudança não é pela economia, mas para mostrar quem são os inimigos. Ao isentar militares e servidores dos Três Poderes na mesma semana em que pode perdoar R$ 1 bilhão de dívidas dos templos religiosos, Bolsonaro vira o pequeno rei que se mantém no poder de olho em continuar no poder. Mais nada. Paula Cristina