Se tem uma coisa que o presidente Jair Bolsonaro conseguiu fazer muito mais do que seus antecessores foi ter vetos derrubados pelo Congresso. Desde o início do mandato, já são 27 decisões tomadas pelo presidente que caíram após votação na Câmara. A 28a derrubada iminente tem a ver com um tema sensível tanto para as contas públicas quanto para o setor privado: a desoneração na folha de pagamento de 17 setores. O ministro Paulo Guedes sempre se mostrou pouco afeito a desvios desse tipo – desonerações têm um recorte indigesto numa pauta liberal, porque distorcem o equilíbrio de condições que diferentes segmentos deveriam ter na economia. Com isso em mente, Bolsonaro vetou, em agosto, uma decisão do Congresso que garantia o benefício fiscal pelo menos até o fim de 2021. Caiu como bomba nos setores produtivos, que correram para fortalecer suas alianças no Parlamento para tentar reverter a situação. O lobby deu certo.

Ao governo, para não engolir mais uma derrota, coube uma mudança drástica no discurso. Parte da base aliada de Bolsonaro já tratou de sair falando que o presidente sempre defendeu a desoneração. A redução em 20% no valor médio pago pelas empresas na folha de pagamento tira do governo cerca de R$ 5,7 bilhões ao ano, cifra considerada essencial, num momento em que a dívida pública marcha forte em direção aos 98% das riquezas do País. Nas últimas duas semanas, antevendo a derrubada do veto, a equipe de Guedes já começou a calcular de onde poderiam vir os recursos que custearão a desoneração. Já há resposta: o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), mantido pelas operadoras de telecom. Faz tempo que ele é objeto de desejo dos residentes do Palácio da Alvorada, e Bolsonaro parece estar mais perto do que seus antecessores de gerir o recurso. Mas só se o Congresso aprovar.

Por isso, o movimento de aproximação. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) já afirmou, oportunamente, que é preciso destravar o Fust. O fundo deveria servir para levar infraestrutura a localidades afastadas, garantindo que cidades menores e com menos apelo comercial recebessem internet e telefonia de qualidade. Há anos, no entanto, as operadoras reclamam que o Fundo entrou em um limbo e sua destinação era incerta. O governo vai precisar cuidar com carinho do tema. Isso porque, de acordo com um assessor técnico da equipe de Guedes, a derrubada do veto não havia sido mapeada dentro do projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), criando um vácuo a ser contornado. Segundo a fonte, que falou sob condição de anonimato, o novo direcionamento do Fust demandará um tempo que o governo não tem, já que seriam necessárias aprovações do Congresso. “Há outras prioridades no parlamento. Mas, para a equipe econômica, resolver um rombo de R$ 5 bilhões é urgente”.

Caso o dinheiro do Fust não cubra a desoneração, pode ocorrer um efeito dominó. Porque, se algo contaminar a previsão de arrecadação do governo para 2021, essa mesma lógica funciona para o setor privado. Sem desoneração, a diferença de custo vai para o preço, pressionando a inflação. Para o economista Ricardo Schultz, professor de finanças aplicadas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os efeitos podem vir de segmentos cruzados. “Alguns setores, como o de proteína animal e o de transporte logístico (contemplados na desoneração) interferem diretamente no preço dos alimentos nas gôndolas”, disse.

DESONERAÇÃO DIVINA Ainda na linha das bondades, mas desta vez sem relação direta com o empresariado, o governo pode perdoar cerca de R$ 1 bilhão de tributos devidos por igrejas. O tema, que já foi aprovado no Congresso, segue agora para sanção presidencial. A expectativa do mercado é que a decisão siga a mesma linha das desonerações, com veto do presidente mostrando o compromisso fiscal com as contas públicas. Nos bastidores, porém, o discurso é outro. Por ser um trecho na Lei 1581/2020, que trata de precatórios e empresas endividadas por causa da pandemia, a expectativa é que o Congresso derrube o veto. A inclusão da emenda no texto veio a pedido do deputado federal David Soares (DEM-SP), filho do pastor R.R. Soares, líder da igreja evangélica Internacional da Graça de Deus — que tem uma dívida tributária de pelo menos R$ 37 milhões. O trecho retira das igrejas a obrigatoriedade de pagar o CSLL (Contribuição Social Sobre Lucro Líquido), além de perdoar as autuações por infração.

Como qualquer resquício liberal parece em isolamento no País, o governo apela ao exotismo. Se por um lado o empresariado quer garantir suas benesses, por outro o governo quer dele demonstração de comprometimento. Com os alimentos mais caros, o presidente fez um apelo aos supermercadistas e pediu que não elevem os preços. O argumento foi insólito: patriotismo. Para tratar do assunto, Bolsonaro e Guedes se encontraram com o presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), João Sanzovo Neto, na quarta-feira (9). O que não estava previsto era a associação receber da Secretaria de Defesa do Consumidor uma notificação para explicar a alta dos preços. Pego de surpresa, Sanzovo disse o básico: eles não podem ser culpabilizados por uma questão macroeconômica. “Não seremos vilões de uma coisa da qual não somos responsáveis”, disse, em Brasília. “Somos a ponta, estamos próximos do consumidor. Assim que sentimos que havia uma pressão muito forte de preços, alertamos o governo.”