A pós quase quatro anos de tratativas, na noite da terça-feira 30, o Conselho Monetário Nacional (CMN) assinou a certidão de nascimento de mais uma sigla. Desta vez, é a Letra Imobiliária Garantida (LIG). A intenção das autoridades monetárias é assegurar um fluxo estável de dinheiro para o setor imobiliário. “A LIG deverá ampliar a participação de grandes investidores institucionais, como fundos soberanos e fundos de pensão internacionais, no mercado imobiliário brasileiro”, diz o advogado especialista no mercado de capitais Carlos Ferrari, sócio do escritório N, F&A Advogados.

A melhor maneira de explicar a LIG é pensar que ela é um cruzamento entre dois títulos financeiros de razoável sucesso no mercado imobiliário, as Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI). Não se assuste com essa sopa de letrinhas. Parece complicado, mas é fácil entender a diferença. Uma LCI é um instrumento de crédito emitido por um banco. É isenta de impostos para o investidor. O dinheiro captado é emprestado pelo banco, e vai financiar pessoas físicas que querem comprar imóveis, ou incorporadoras que pretendem construir.

Já um CRI não tem nada a ver com os bancos. Ele é um título do mercado de capitais, e quem o emite são companhias de securitização. Há exceções, mas, em geral, essas empresas selecionam imóveis que já existem, e que vão gerar um fluxo futuro de pagamentos. Podem ser os aluguéis de um shopping center ou de um edifício corporativo de primeira linha. As securitizadoras vendem esses recursos antecipadamente para investidores de longo prazo. O dinheiro da venda do CRI financia a expansão do shopping, e os investidores recebem prestações mensais, semestrais ou anuais. O imóvel serve de garantia.

Em uma comparação simplista, uma LIG é um CRI emitido por um participante do sistema financeiro. Pode ser um banco, uma companhia hipotecária ou uma associação de poupança e empréstimo. Os ativos que lastreiam a LIG serão créditos imobiliários, os financiamentos para compra ou construção de imóveis comerciais ou residenciais. Há uma grande diferença com o CRI: além do imóvel, o capital do banco serve como uma garantia adicional. Pode parecer irrelevante, mas esse detalhe deve abrir as portas para um mar de dinheiro.

Goldfajn, do BC: reduzindo o direcionamento dos empréstimos no sistema financeiro (Crédito:Wenderson Araujo)

Muitos dos investidores internacionais de longo prazo, que são os financiadores tradicionais do setor imobiliário, só podem investir em papéis mais seguros do que os CRI. “Como o Brasil não possui grau de investimento, isso naturalmente afasta o perfil de investidor da LIG, que busca mais segurança”, diz Gilberto Abreu, presidente da Abecip, associação das instituições que atuam no crédito imobiliário.

Ao comentar a decisão do CMN, na terça-feira 30, Otavio Damaso, diretor de Regulação do Banco Central (BC), disse que não há previsão de quanto esse instrumento pode captar. No entanto, ele comparou o total do crédito imobiliário no Brasil com o de outros países parecidos com o Brasil. Segundo dados do BC, em julho, o total de empréstimos imobiliários somava R$ 555 bilhões, menos de 10% do Produto Interno Bruto (PIB). Em outros emergentes, atinge até 30% do PIB. Segundo Damaso, há espaço para esse estoque duplicar ou mesmo triplicar. O equivalente internacional da LIG é um título chamado covered bond, muito popular na Europa.

No fim de 2016, o estoque de covered bonds emitidos em euros somava € 2,5 trilhões (R$ 9,4 trilhões), ou 16 vezes o total do financiamento imobiliário no Brasil. Ferrari, do N, F&A, avalia que o estoque de LIG pode chegar a R$ 5 bilhões nos próximos três anos. “Quando esse mercado estiver maduro, em cerca de dez anos, não se descarta a hipótese de haver um estoque de R$ 100 bilhões emitidos.” Se esses prognósticos se confirmarem, eles vão representar um enorme alívio para os bancos. Hoje, o principal instrumento de financiamento imobiliário é a caderneta de poupança, que encerrou julho com um saldo de R$ 681,2 bilhões.

Apesar de essa cifra representar um novo recorde para a série histórica calculada pelo BC desde 1995, o patrimônio é considerado insuficiente para custear uma expansão sustentável do financiamento imobiliário. Ao destravar a vinda de recursos internacionais, a LIG poderá suprir essa lacuna, e tornar o crédito menos direcionado, em linha com a estratégia de Ilan Goldfajn, presidente do BC. Por diversas vezes, Goldfajn criticou o direcionamento de recursos, chamado por ele de “meia entrada”. Segundo o presidente do BC, essas barreiras impedem uma queda efetiva e sustentável dos juros, ao tornarem a política monetária menos eficaz. A LIG pode ser um passo na direção certa. A conferir.