A Organização Mundial do Comércio (OMC) vive uma luta contra o tempo. A partir de 31 de dezembro, o Órgão de Solução de Controvérsias, principal fórum de resolução de conflitos no comércio internacional, deixará de funcionar. Graças ao veto americano à indicação de novos membros, o corpo de apelações, equivalente à segunda instância dos processos na entidade, ficará sem um número mínimo de integrantes para operar. Países e empresas envolvidos em disputas terão de buscar acertos diretamente entre as partes. Isso levará a situações imprevisíveis, já que cada negociação pode ter regras próprias. Será, em suma, um retrocesso na teia institucional que garante o bom funcionamento das trocas no comércio mundial.

O impasse no “tribunal” da OMC é apenas um dos desafios que colocam a entidade em xeque. De um lado, os Estados Unidos, maior economia global, chamam a atenção para a defasagem nos procedimentos que permitem distorções na arena internacional. De outro, os chineses demonstram ressalvas em relação às queixas americanas. Os dois países são os principais artífices no movimento que causa apreensão na comunidade global neste momento: a guerra comercial. Os questionamentos, porém, envolvem muito mais atores. Na reunião de dezembro do G-20, em Buenos Aires, as maiores potencias econômicas reforçaram a importância de uma reforma na OMC.

MUDANÇAS Desde que assumiu o posto de diretor geral da instituição, o embaixador brasileiro Roberto Azevedo vem trabalhando em reformas. Diante da escalada protecionista, o tema virou uma questão de vida ou morte. “Qualquer sistema multilateral tem de estar constantemente se atualizando”, afirma. “A ideia é avançar de uma maneira pragmática, onde e quando for possível.” Os moldes da reformulação ainda não estão muito claros. Não se trata de um pacote ou uma nova rodada de negociações. É um processo contínuo para tornar as decisões mais rápidas e flexíveis.

Fundada em 1995, a OMC substituiu as rodadas de negociações comerciais que aconteciam periodicamente entre diversos países sob o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, em inglês). Consolidou-se como uma instância permanente voltada para lidar com o tema e garantir que as regras do comércio internacional seriam cumpridas com equilíbrio entre as partes.

Pivô da guerra: tarifas sobre o aço importado deflagaram a escalada protecionista americana contra a China (Crédito:iStock)

O Brasil já obteve vitórias importantes em processos, como no caso do algodão, em que os americanos concordaram em pagar compensações milionárias aos produtores brasileiros por subsídios aplicados ao plantio local. Na entidade, o País ainda possui um status diferenciado que garante vantagens como um prazo mais amplo para adequação a acordos comerciais e espaço maior para a prática de subsídios agrícolas. Num acordo recente com o presidente americano Donald Trump, Jair Bolsonaro aceitou abrir mão desse status em troca de apoio do ingresso na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), conhecido como o “clube dos ricos”. Na quinta-feira, 23, os EUA formalizaram, em Paris, o apoio ao Brasil.

As regras que hoje permitem a um país se autodeclarar como “em desenvolvimento” e obter a diferenciação na OMC estão entre os temas centrais dos pedidos de reforma. Os americanos consideram errado autorizar mercados que têm grande participação no comércio internacional e ainda mantenham o status preferencial. Pela proposta americana, ao menos 30 países perderiam o status diferenciado. Ainda são classificados desta forma economias como China, Índia e Coreia do Sul. Em documento enviado à OMC sobre a reforma, os chineses defenderam a manutenção do mecanismo, os valores centrais do sistema multilateral de comércio, além de respeito aos métodos de crescimento dos países-membro. Em suma, uma defesa de tudo que os EUA acusam a China de fazer: proteção estatal ao mercado e uso indevido do status de “emergente”.

Trump justifica sua posição ao listar os defeitos da OMC. Um dos mais importantes é a demora em resolver problemas do Órgão de Solução de Controvérsias e do corpo de apelações. A média entre uma reclamação e a resolução do problema é de dois anos. Por exemplo: vários países procuraram a OMC em 2012 para reclamar do Inovar Auto, que dava estímulos à produção automobilística no Brasil. A decisão só saiu quando o programa havia terminado. “Os EUA dizem que as decisões muitas vezes violariam a soberania dos países e que os ‘juízes’ ficam mais de quatro anos para acompanhar determinados casos”, afirma Rabih Nasser, professor de direito de comércio internacional da FGV. O corpo de apelações é composto por sete membros – juristas e especialistas em comércio – indicados por consenso pelos 164 países membros e com mandato de quatro anos. São eles que dão o “veredito” dos casos. Com os vetos americanos, atualmente ainda restam três integrantes, número que cairá para apenas um até o fim do ano.

Nos últimos anos, a OMC pouco avançou no setor de agricultura, por exemplo. Países europeus e a Índia continuam sendo considerados mercados excessivamente fechados, reclamação à qual o Brasil faz coro. Já os próprios EUA são acusados de serem protecionistas nas indústrias do aço e alumínio – algo exacerbado com o lançamento de sobretaxas às importações dos dois produtos no ano passado. “O espírito geral é de desapontamento”, afirma Shaun Donnelly, vice-presidente de investimento e finanças do Conselho de Negócios Internacionais dos EUA (USCIB). “Todos reclamam que a OMC não consegue impedir que nada disso aconteça, nem melhorar o comércio internacional em si.”

Tarda, mas não falha: um processo do Brasil contra subsídios americanos ao algodão gerou compensações aos produtores nacionais. A disputa durou nada menos que dez anos (Crédito:Marco Ankosqui)

Assumindo um tom mais neutro, a União Europeia fez uma série de propostas mais específicas. Em junho de 2018, o bloco entregou um documento à OMC na qual propõe mudanças como: transparência por parte dos países membros quanto aos subsídios e práticas de empresas estatais, aumento no número de membros do Corpo de Apelações para nove pessoas, melhoria na identificação de práticas de bloqueio em mercados internacionais e  flexibilização sobre a classificação de “emergentes”. As medidas têm o potencial de irritar tanto chineses quanto americanos. “O mundo mudou desde 1995. A OMC não”, conclui o documento.

Considerado hábil negociador, Roberto Azevedo já está impondo mudanças que podem ajudar na sobrevivência da organização. “Foi graças a ele que foi possível fazer o Acordo de Bali”, afirma Welber Barral, ex-secretário do antigo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e cofundador da BMJ Consultoria. O tratado de facilitação de comércio e redução geral de tarifas foi o único a se concretizar dentre as propostas discutidas na falida Rodada de Doha. Outras medidas que Azevêdo pretende adotar é implementar o uso de tratados plurilaterais, aqueles em que o consenso entre todos os países não é necessário e só é válido para os membros que quiserem implementá-los. “Isso evitaria que a OMC se esvazie. Mas não substitui uma reforma geral”, afirma Barral.

A ameaça da guerra comercial ajuda a acelerar o processo de mudanças e pode ser a oportunidade que faltava para a entidade provar o seu valor. “Sem a OMC, teríamos um colapso da economia mundial”, alerta Gabriel Petrus, diretor-executivo da Câmara Internacional do Comércio (ICC) no Brasil. “Sem um órgão regulador geral, cada tratado seria feito de uma forma, com países sendo protecionistas, intervencionistas e entrando em disputas intermináveis.” Falta apenas combinar com os russos. E chineses, americanos, brasileiros…


“Não fosse a OMC, já poderíamos estar numa guerra comercial desenfreada”

Para o brasileiro Roberto Azevedo, diretor-geral da OMC, a reforma da entidade deve ser contínua

Considerando as diversas sugestões apresentadas por países-membros, como está sendo organizado o processo de reforma na OMC?
O termo “reforma” abrange ideias e iniciativas para tornar a OMC mais ágil, dinâmica e responsiva aos desafios globais. Isso inclui propostas para melhorar o monitoramento e a transparência das medidas adotadas pelos membros e sugestões para agilizar processos negociadores. E também envolve aprimorar nosso sistema de solução de controvérsias. Não estamos falando de um pacote ou de uma nova rodada de negociações. A ideia é avançar de uma maneira pragmática, onde e quando for possível.

Quanto tempo isso pode demorar?
O processo é contínuo. Qualquer sistema multilateral tem que estar constantemente se atualizando. Tenho trabalhado para avançar reformas na OMC desde que me tornei diretor-geral, em 2013. E tivemos sucessos importantes, como o Acordo de Facilitação do Comércio, a eliminação dos subsídios às exportações agrícolas e a expansão do Acordo de Tecnologia da Informação. Depois de tantos anos sem progresso, isso foi transformador. Esses acordos incorporaram novas estruturas e flexibilidades que, segundo alguns membros, poderiam fornecer novas ideias para futuras reformas.

Um dos países mais críticos ao papel da OMC são os EUA. A queixa é de prejuízos causados por posturas passivas da entidade, em especial sobre a concorrência com a China. Como o senhor avalia a crítica?
Na verdade, os EUA se queixam de que as regras negociadas no passado precisam ser atualizadas e ter maior abrangência. A China tem um modelo sui generis nos planos econômico e político e na forma como os dois interagem. Isso apresenta desafios para os parceiros comerciais – até pela pouca familiaridade com a forma como atuam os agentes econômicos na China. Essas peculiaridades com frequência são percebidas como distorções das condições de competição. O diálogo é essencial para superar essas desconfianças.

Há também queixas a respeito do Órgão de Solução de Controvérsias. Como seria possível reformulá-lo até o fim do ano, quando ficará somente com um integrante?
Existem duas questões aí. Uma mais ampla – e de longa data – sobre como aprimorar o Sistema de Solução de Controvérsias. A outra, a questão urgente do impasse nas nomeações para o Órgão de Apelação. Nesta frente, temos hoje 11 propostas sobre a mesa. Mas os membros ainda não têm uma visão comum. Isso é preocupante. Em dezembro, o Órgão de Apelação poderá ficar paralisado por não ter membros suficientes para julgar um caso. Isso já está afetando decisões hoje. Os países que estão trazendo casos agora não têm certeza de qual serão suas opções quando chegar a etapa de apelação Tenho dito aos membros que intensifiquem o trabalho para encontrar soluções, inclusive um plano B, se situação atual não for resolvida.

Os EUA cobram novos critérios para determinar quais países precisam de tratamento especial. Já a China é contra a diferenciação aos emergentes. É possível conciliar os dois aspectos?
A questão da diferenciação entre os países em desenvolvimento na OMC é bastante sensível. Alguns membros buscam o reconhecimento de que, dentro da categoria de “países em desenvolvimento”, existem casos muito diferentes em termos de tamanho e de capacidade para participar no comércio internacional. Outros argumentam que o critério de autodeterminação deve ser respeitado, dada a complexidade dessa questão. É um debate complicadíssimo. Mas acredito que soluções criativas e flexíveis podem ajudar a conciliar essas diferenças. O Acordo de Facilitação de Comércio é um excelente exemplo. Nele, cada país em desenvolvimento determina o nível de flexibilidade que necessita para implementar cada compromisso específico que assumiu, indicando, inclusive, se precisa de assistência técnica para cumprir suas obrigações.

Em tempos de escalada da guerra comercial e tratados bilaterais, a OMC ainda é relevante? Como fazer com que os países percebam a importância do órgão?
Sobretudo no contexto atual, a OMC é mais relevante que nunca. Não fosse a OMC, já poderíamos estar em um cenário de guerra comercial global e desenfreada. Isso está ficando cada vez mais claro para governos e atores econômicos – e para a sociedade como um todo. Os líderes do G20 disseram em seu último comunicado que a OMC é elemento-chave para a saúde da economia global. Reconheceram ainda que as regras multilaterais são fundamentais para a criação de empregos e para o desenvolvimento. A realidade é que num ambiente de guerra comercial, todos perdem. Tensões e incertezas freiam o apetite dos investidores. Medidas comerciais restritivas têm efeito disruptivo nas cadeias globais de produção. Isso reduz o crescimento econômico. Os números falam por si. Em 2017, o comércio mundial cresceu 4,6%. Já nossas previsões para 2019 são de 2,6%.Tudo isso evidencia os benefícios de um ambiente de estabilidade e de regras claras. E só a OMC pode oferecer isso.