Dependendo do grau de tolerância do observador, Mario Grieco é um executivo que parece estar sempre no lugar certo na hora certa — ou no lugar errado na hora errada. CEO da Monsanto na virada do milênio, ele enfrentou a polêmica da liberação de uso de transgênicos no Brasil, foi ameaçado de ser preso caso fosse à sede da empresa e viu fazendas da companhia invadidas e destruídas por ativistas. Depois de uma passagem pela Pfizer, foi presidente da farmacêutica Bristol Myers Squibb no Brasil e na América Latina, entre 2001 e 2007, quando foi pioneiro em trazer medicamentos biológicos ao País.

Há pouco menos de dois anos, foi escolhido para ser o executivo responsável para trazer a Fluent Cannabis Care ao Brasil. Empresa americana com ações cotadas na bolsa de Toronto, ela é uma das maiores forças mundiais do nascente mercado de remédios à base de cannabis. O histórico de Grieco, que não foge da briga ao atuar em segmentos pioneiros e controversos, contou muito para que ele fosse o escolhido. “Estamos 40 anos atrasados. Até mesmo em relação à América Latina, o Brasil está defasado na liberação do uso medicinal da cannabis”, diz. “Imagina a quantidade de pessoas que morreram e que poderiam ter sido tratadas nesse tempo todo. É incompreensível.”

Os medicamentos derivados dos princípios ativos da maconha — o canabidiol (CBD), que não é psicoativo, e mesmo o tetrahidrocanabinol (THC), responsável pelo efeito “inebriante” da planta — servem para tratar 40 doenças, segundo a Sociedade Americana de Medicina. Em especial, diminuir os sintomas de esclerose, epilepsia, dor crônica, ansiedade, Doença de Parkinson, Alzheimer e até os efeitos colaterais de tratamentos a base de quimioterapia. A Organização Mundial da Saúde recomenda que a ONU mude a classificação da cannabis para uma substância terapêutica. Desde 1961, ela está na mesma categoria de risco dos opioides, como a heroína. Mas novas pesquisas estimam que os 100 ingredientes encontrados nas variações de cannabis podem ter até 400 aplicações médicas diferentes.

Novo mundo: Grieco, CEO da Fluent, aposta que o avanço do setor é inevitável (Crédito:Rogério Cassimiro)

A Fluent é apenas uma das empresas que se estruturam para explorar este mercado no Brasil. Sua plantação está baseada em Orlando, na Flórida, mas ela vê potencial de produzir ao País. Apenas para a montagem da empresa, ela anunciou R$ 20 milhões de investimentos e estima aportar outros R$ 30 milhões para implementar as pesquisas e produção locais. “Se for liberada a plantação aqui, podemos até exportar para a Europa. Quero trazer o plantio para cá, não para Argentina ou a Colômbia”, diz Grieco. “Chegamos a desanimar no ano passado por questões políticas, mas agora temos maior esperança.”

Além da Fluent, começam a olhar para nosso mercado empresas já conhecidas no cenário internacional, como as americanas Charlotte’s Web e HempMeds, e as canadenses Canopy Growth e Verdemed, fundada por um ex-CEO da Bombril. “Até mesmo as grandes farmacêuticas estão aprendendo sobre como atuar nesse segmento”, afirma Marcelo Grecco, da consultoria especializada The Green Hub. “Todas sabem que não tem mais volta. Os EUA, o Canadá, a Europa, Israel e Austrália já liberaram a cannabis medicinal.”

O potencial brasileiro é um dos maiores do mundo. Apenas a receita com medicamentos de dor crônica movimenta R$ 10 bilhões ao ano no País. E a expectativa é que a cannabis medicinal atenderá a 2 milhões de pacientes logo que seu uso seja regulamentado, gerando R$ 1,9 bilhão em receitas. Depois de três anos de liberação, o mercado brasileiro pode atingir R$ 4,7 bilhões e atender a 3,5 milhões de pessoas, segundo a consultoria The Green Hub. “Considerando as seis principais doenças, haveria 10 milhões de pacientes no Brasil”, diz Camila Teixeira, CEO da consultoria Indeov, que representa duas das maiores americanas do mercado medicinal, a Charlotte’s Web e Elixinol.

Grandes empresas do setor de cannabis medicinal começam a chegar ao Brasil prontas para investir num mercado que pode se tornar bilionário

Atualmente, a importação pode ser feita apenas diretamente por pacientes, não por companhias. Mas todas as empresas acompanham com atenção as consultas públicas abertas pela Anvisa, a agência regulatória da saúde, que se iniciam neste mês. As discussões envolvem a regulamentação do registro dos remédios e da produção local. A proposta atual contempla apenas a produção indoor, em uma espécie de bunker de alta segurança e com acesso por biometria, para evitar desvios de produtos e enfurecer a bancada evangélica do Congresso. Os especialistas nesse mercado são unânimes em dizer que isso encareceria os produtos locais, mas de qualquer forma serviria como ponto inicial para a criação de uma nova indústria.

Semente Com sócios brasileiros, canadenses e colombianos, e sediada em Toronto, no Canadá, a Verdemed aguarda a legislação para injetar recursos no Brasil. A companhia tem planos de investir US$ 80 milhões na América Latina até 2022. A previsão é que metade desse montante seja destinada ao País, provável maior fonte de receitas da região.  “Se essa questão for regulamentada, vai ser uma corrida do ouro”, afirma José Bacellar, sócio-fundador e CEO da empresa. O empresário avalia, no entanto, que é preciso ter menos “paixão” para que o tema avance no país. “É essencial tirar o pessoal do ‘legalize’ e da ‘erva do demônio’, e deixar apenas os adultos na sala. Essa é uma discussão sobre saúde pública e potencial econômico.”

Ex-CEO da Bombril, Bacellar fundou a Verdemed em meados de 2018. A ideia começou a tomar forma dois anos antes, quando trabalhava na área de desenvolvimento de negócios da farmacêutica canadense ACIC e testemunhou a ascensão dos medicamentos à base de cannabis naquele país. Depois de ver negada a sua sugestão para que a empresa investisse nesse filão, decidiu atuar como consultor no segmento e, posteriormente, teve uma breve passagem pela Canopy Growth, de onde saiu para criar seu próprio negócio no setor. Desde então, a Verdemed captou US$ 13 milhões com investidores e family offices da América Latina.

José Bacellar, CEO e sócio-fundador da Verdemed: “É essencial tirar o pessoal do ‘legalize’ e da ‘erva do demônio’, e deixar só os adultos na sala. É uma discussão de saúde pública e potencial econômico” (Crédito:Rogério Cassimiro)

Até o fim de 2019, a meta da Verdemed é levantar mais US$ 20 milhões, mesma cifra projetada para 2020. No modelo proposto, a empresa busca sócios locais em cada país que decide ingressar. Por aqui, a composição societária da empresa envolve dez médicos, entre outros acionistas. Para o próximo ano, o grupo prevê ainda uma captação adicional de mais US$ 20 milhões, que será destinada para estudos clínicos, além da geração de caixa com a subsidiária colombiana, que já estará em plena operação. Hoje, o cultivo da companhia está dividido entre a Colômbia e o Canadá, país que, por sua vez, concentra a produção dos medicamentos Em termos de expansão, mercados como Chile, Peru e México devem ser os próximos pontos adicionados ao mapa da empresa.

No Brasil, apesar da indefinição regulatória, a Verdemed não está de braços cruzados. Em junho, a empresa comprou o laboratório farmacêutico Mydstein, de Vargem Grande Paulista (SP), por US$ 1 milhão. Inicialmente, a estratégia é importar medicamentos do Canadá e, possivelmente, da Colômbia e dos Estados Unidos. No curto prazo, a ideia é obter autorização para comercializar medicamentos destinados a pacientes com esclerose múltipla e epilepsia infantil. Estão no radar ainda o desenvolvimento local de produtos e estudos clínicos em áreas como ansiedade social, sono, dores crônicas e glaucoma. O País também será o piloto do modelo de vendas online, diretas, que a companhia planeja adotar para todas as suas operações. “Nós estamos prontos, inclusive para o plantio no Brasil”, afirma Bacellar.

No cenário global, duas empresas estão melhor posicionadas quando se fala da produção de cannabis. A britânica GW Pharmaceutical é a maior dedicada apenas ao mercado medicinal. Ela possui um plano longo de desenvolvimento de medicamentos à base da cannabis e já exporta o Sativex (o primeiro remédio do tipo aprovado no Brasil) para 18 países. Já a canadense Canopy Growth é a maior empresa considerando as diversas aplicações de cannabis. Ela possui divisões de medicamentos, de uso do cânhamo para a produção de materiais e cosméticos, além de outra voltada ao uso recreativo que opera apenas no Canadá. A Canopy também vendeu em agosto, por US$ 4 bilhões, 38% do seu capital para a americana Constellation Brand, dona das marcas de cervejas Corona e Modelo e dos vinhos Robert Modavi. Mais uma prova de que o setor atrai grandes corporações.

Em junho, a Canopy anunciou que a divisão de medicamentos, a Spectrum Therapeutics, está chegando no Brasil, com investimento de R$ 60 milhões. Já são 30 funcionários num escritório na Avenida Faria Lima, em São Paulo.  “Temos estratégia de priorizar o investimento em educação junto a hospitais e universidades, para combater o estigma em relação à planta”, afirma Jaime Ozi, presidente da Spectrum no Brasil. “Percebemos o interesse dos médicos, que não estudam o tema em faculdades e são pressionados até pelos próprios pacientes a saber mais sobre cannabis medicinal.”