Avô de Fernando Meirelles, Waldemar, dizia: “Quem trabalha muito, não tem tempo para ganhar dinheiro”. O neto concorda, já que não segue muito isso, focando suas energias no que ama, que é rodar filmes e séries, esquecendo que o know-how de sua aniversariante e prestigiada produtora, a O2, serviria para fazer games e projetos para o Metaverso. O modelo de gestão da empresa que ajudou a fundar, em 1991, ao lado de Paulo Morelli e Andrea Barata Ribeiro, está mudando, querendo tirar uma parte dos refletores do rosto dos sócios, então pode ser que o futuro traga trabalhos que o avô de Meirelles elogiaria pelos ganhos. São 30 anos de uma das produtoras e agências mais antigas do mercado brasileiro, com 29 filmes, 39 séries e mais de 20 mil peças publicitárias — e um sócio de carreira internacional, indicado ao Oscar por Cidade de Deus (2002), e considerado um dos profissionais mais gentis e educados do mercado. Mesmo assim, em 2020, com a pandemia, começaram uma contagem regressiva com uma planilha compartilhada entre os sócios em que havia uma data fatídica em que talvez quebrassem. Ninguém gosta desse Excel…

A pandemia deu um impulso no streaming, mas ao mesmo tempo que a demanda por filmes e séries cresceu, a produção foi interrompida completamente. “No início de 2020 a O2 parou duas séries em filmagem além de adiar três outras que seriam rodadas ao longo do ano”, afirmou à DINHEIRO o diretor. “Quando declarei que só ficava o segurança na O2, não foi força de expressão. Fechamos 2020 com queda de 30% do que tínhamos previsto de negócios. Foi tenso Só a publicidade, um dos filões da produtora, caiu 25% em 2020. A publicidade foi voltando e a filmagem remota ajudou. Meirelles até voltou a dirigir para esse mercado umas 20 peças — mas de casa, claro.

Em meados de 2021 a O2 voltou a filmar pra valer. O que estava represado se somou ao que já estava programado para 2021. Por isso, não só a O2, mas todo o mercado de audiovisual está trabalhando no limite. Hoje é preciso pegar uma senha para conseguir montadores, fotógrafos, produtores executivos, assistentes de direção e até mesmo equipamentos. “Há poucas semanas eu estava rodando uma série para a HBO, Pico da Neblina, e queríamos montar uma equipe extra para fazer uma filmagem em paralelo — não conseguimos encontrar nenhuma câmera disponível em São Paulo. Nunca vi isso!”, disse. No último semestre de 2021, a O2 estava com uma média de dez câmeras alugadas diariamente.

DE VOLTA Acima, a O2 roda em 2021 um filme publicitário em seu estúdio na Granja Viana. Para Meirelles, 2022 vai ser de forte crescimento no setor de audiovisual

FILMES EM CASA Com a chegada de novas plataformas como Amazon, Apple TV+, Disney+, Star+ e outras, o mercado está se adaptando para atender esse crescimento na demanda por conteúdo, e isso começa a refletir em tudo, apesar da pandemia ainda em curso e da retração das pessoas quanto a ir ao cinema. “As salas ainda estão bem vazias depois que reabriram”, disse. “Tenho impressão que o hábito de assistir a filmes em casa se solidificou. Hoje parece difícil acreditar que as salas voltarão a ter o público que já tiveram, o que é uma pena.”

Essa constatação é confirmada, em parte, por Melaine Schroot, gerente geral da Comscore Movies Brasil, empresa especializada em análise no setor. Segundo ela, a bilheteria de 2021 no Brasil fechou com saldo positivo, cresceu 41,4% em bilheteria e 31,2% em público quando comparado com o mesmo período do ano anterior. Com isso, houve uma arrecadação de R$ 914,1 milhões e um universo de 52,8 milhões de espectadores. “Estes números representam apenas 30% do desempenho da indústria do cinema antes da pandemia, que em 2019 atraiu 177 milhões de pessoas”, disse Schroot a DINHEIRO.

Meirelles tem um bom caso dentro disso, como produtor de Marighella, filme sobre a controversa figura do guerrilheiro uma vez considerado “inimigo número 1 da Ditadura”. Depois de problemas com a Ancine e acusações de censura, estreou em novembro de 2021 e passou de 317 mil espectadores. “Foi uma boa surpresa para nós, depois de toda a confusão para lançá-lo. Talvez o fato de o presidente Jair Bolsonaro ter dito que era um absurdo este filme ter sido feito possa ter ajudado na performance (risos)”, afirmou. “Mas claro que o fato de ser um ótimo filme é que o colocou onde está.”

Com 264 funcionários fixos, entre CLT e PJ, a O2 tem equipes freelancers que produzem e filmam seus projetos. Com a volta do “ação!”, rodam média de quatro séries simultaneamente. Com mais a publicidade, diariamente o número de pessoas trabalhando está ao redor de 1,1 mil, uma operação complexa, tocada em separado e sem tumulto. Parece que uma retomada vem aí, e não só para a O2… (Leia mais na entrevista a seguir).

ENTREVISTA: Fernando Meirelles
“Finalmente agora somos estado e mercado free”

FILMANDO NO EXTERIOR Meirelles dirige na Itália o ator Jonathan Pryce, no filme da Netflix. Dois Papas, de 2019, que também traz no elenco Anthony Hopkins. (Crédito:Peter Mountain)

Vai ser preciso mais tempo para retomar do ponto em que estavam em 2019?
Que nada! Em 2021 já superamos 2019 de longe. E este ano teremos forte crescimento. Uma série demora mais de dois anos para nascer e ser entregue ­— nós, por exemplo, já apresentamos para as plataformas séries a serem lançadas em 2024. Em 2019, que escoou o que produzimos em 2017, foi um ano de entressafra. Lançamos apenas duas. Em 2020 não filmamos, mas entraram no ar outras duas séries. Em 2021 filmamos bastante, mas estreamos apenas dois longas: Sete Prisioneiros e Marighella. Em 2022 o jogo já virou. Teremos sete séries entrando no ar e nesta fase acho que manteremos a média de cinco séries e dois longas por ano na casa, em várias etapas. É nossa situação hoje. E, pessoalmente, espero que a Netflix dê logo o sinal verde no filme que assinamos, ainda secreto, para eu poder começar a viajar e rodar.

Uma produção como o filme 7 Prisioneiros, com Rodrigo Santoro, lançado em 2021 pela Netflix e que você produziu, tem que tamanho de orçamento?
Não sei o número, mas foi uma produção modesta, quase em uma locação só e com um elenco pequeno. Acabamos a filmagem na véspera do dia em que o Brasil foi “fechado”, em 2020. Mais três dias e tudo teria sido interrompido. Para nossa surpresa e alegria, o filme ficou no final de 2021 na lista de top 10 da Netflix em 30 países. Chegou a ser o segundo filme em língua não inglesa mais visto no mundo na plataforma. Por alguma razão, bombou no Oriente Médio. O cinema tem destas coisas: não sabemos fabricar um filme de sucesso e quando acontece, também não fica claro o que fez viralizar. É a beleza da profissão.

É bom fazer um filme para Netflix?
Sou totalmente favorável. Maior alcance. Como espectador tenho a vantagem de poder assistir a filmes e séries de muitos países aos quais jamais teríamos acesso. Não ter a cobrança de bilheteria do primeiro fim de semana é um alívio — um bom filme poderia ser engavetado antes do tempo se coincidisse com um fim de semana que deu praia, ou com final de campeonato.

Vocês completaram 30 anos. O que significa ser uma “produtora independente brasileira”, como vocês se designam?
O independente é em relação à TV. Quando todos os programas eram produzidos pelas próprias emissoras, a O2 apresentava projetos, produzia fora do esquema deles, entregava pronto. Hoje essa independência se refere ao Estado. O mercado de audiovisual teve um crescimento vertiginoso nos últimos 20 anos, mas em 2019 decidiu-se que cineastas eram todos esquerdistas e assim a Ancine e os mecanismos de financiamentos públicos foram paralisados como se fossem o Ibama ou a Funai. Talvez por intuição ou saco cheio mesmo (risos), lá em 2016 percebemos que depender de financiamento ou aprovação de contas pelo Estado dava um enorme trabalho. Melhor focar nos projetos do que preencher formulários. Deliberadamente traçamos um plano para a busca de nossa independência. Marighella foi nosso último projeto com dinheiro público. Mas nos últimos dois anos recebemos 12 fiscalizações da Receita Federal. Nunca acham problemas, mas voltam o tempo todo, como se houvesse uma pressão de cima para achar alguma coisa. Somos uma empresa Estado-free.

E investimentos diretos na produtora, de grandes investidores, fundos?
Zero. Nadica de nada. Somos mercado-free.

Propostas para vender o negócio?
Sim, mas se vendermos vamos fazer o quê? O que mais gostamos é de fazer filmes. Disseram que daria pra vender, alugarmos aqui e continuar rodando. Pronto, decidido: estamos à venda (risos)!