O dia a dia da política frequentemente disfarça o fato de que uma das funções mais importantes do Parlamento é fiscalizar as contas públicas. Legislativo e transparência não são palavras que costumam andar juntas. No entanto, no que depender do economista paulista Felipe Salto, primeiro diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), isso vai mudar. O novo órgão, que começou a funcionar em janeiro, inspirou-se na experiência de outros 30 países. Nos Estados Unidos, o Congressional Budget Office (CBO) dedica-se a esquadrinhar o orçamento desde 1972.

Por aqui, a IFI, que é um órgão vinculado ao Senado, terá o papel de acompanhar os gastos e as receitas do governo em todas as esferas. Com uma equipe enxuta de sete pessoas, entre economistas e especialistas em finanças públicas, o IFI deve divulgar relatórios mensais, traçar projeções, encontrar distorções e ser uma pedra no sapato do Executivo, do Judiciário e do próprio Legislativo. A ideia é fazer barulho, o máximo possível. “A luz do sol é o melhor desinfetante, e quando você começa a dar transparência às contas públicas, a administração do dinheiro tende a ser melhor”, diz Salto, remetendo ao juiz americano Louis Brandeis. Ele falou à DINHEIRO:

DINHEIRO – Como um órgão como a IFI pode ajudar a gestão pública?

FELIPE SALTO – Um dos problemas da crise fiscal no Brasil é a falta de transparência. Vivemos uma era de contabilidade criativa, cujo expoente foram as chamadas pedaladas fiscais. Tudo isso aconteceu apesar de diversas consultorias independentes e economistas respeitados terem alertado para essa escalada irresponsável dos gastos. Se existisse a IFI, ela teria tocado um sinal de alerta mais forte, pois teria a independência necessária para isso.

DINHEIRO – Como a IFI vai garantir sua independência?

SALTO – Somos três diretores. O diretor-executivo e os outros dois diretores que vão compor o conselho diretor têm mandato fixo. O diretor executivo é indicado pela Presidência do Senado e os outros dois diretores são indicados por comissão. A partir do ano que vem, a IFI terá autonomia orçamentária, e os recursos não são contingenciáveis, ou seja, não podem ser cortados. As duas pernas da independência são essas: mandato fixo e autonomia orçamentária.

DINHEIRO – Por que mais transparência melhora a gestão?

SALTO – Dando transparência às contas, a aplicação do dinheiro tende a ser melhor. Tem uma frase do juiz americano Louis Brandeis de que a luz do Sol é o melhor desinfetante. Ela acaba com o mofo e dá condições para trabalhar melhor. À noite, todos os gatos são pardos, não se consegue enxergar nada, nem diferenciar nada. Quando você colocar luz sobre os gastos públicos, a sociedade vai poder decidir melhor como alocar os recursos, ainda que seja indiretamente, por meio dos seus representantes eleitos. Com mais informações, talvez a sociedade comece a se mobilizar mais para saber quanto custam os projetos de lei, quanto custa o reajuste para determinadas categorias de servidores públicos. Por exemplo, quando você começa a mostrar e a diferenciar, isso explicita os trade-offs: quanto custa fazer mais de uma coisa e deixar de fazer outra. Por exemplo, quando decidimos dar mais subsídio para o BNDES, deixamos de fazer mais Bolsa Família, ou vice-versa. Quem tem de decidir isso é a sociedade, por meio dos seus representantes eleitos. Hoje, é tudo muito obscuro.

DINHEIRO – Como a IFI poderia impedir a volta da contabilidade criativa e das pedaladas fiscais?

SALTO – Em 2009, escrevi um artigo com o ex-ministro Maílson da Nóbrega com o título “Contabilidade criativa turva meta fiscal”. Foi a primeira vez que apareceu o termo contabilidade criativa se referindo às práticas contábeis do governo. Lá, em 2009, nós advertimos que esse expediente de manipulação das contas poderia nos colocar em um caminho perigoso. Fomos chamados de pessimistas, mas nossa preocupação se provou correta.

DINHEIRO – Como assim?

SALTO – Por exemplo, no caso dos abatimentos da meta. O governo tinha uma meta de superávit de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Ele gastava 0,5% com investimento e dizia que era possível abater esse gasto da meta fiscal. Depois, passou-se a abater as desonerações. O argumento era: já que eu estou abrindo mão de imposto para gerar empregos e estimular a economia, eu posso reduzir minha meta fiscal. Sempre se encontram justificativas excelentes para fazer o mal. Se a IFI já existisse, ela teria apontado esse erro com força no nascedouro e isso talvez pudesse ter sido evitado.

DINHEIRO – A sociedade tem a impressão de que o orçamento é obscuro.
O sr. concorda?

SALTO – Sim, para você conseguir tirar uma informação do orçamento você precisa de especialistas. O Senado tem uma consultoria de orçamento, a Câmara tem uma consultoria de orçamento. Mesmo assim, para saber quanto o governo gastou com o Fies, algo que deveria ser simples, é preciso consultar os sistemas, inserir filtros. Cada programa do governo é um conjunto de ações, e não é trivial saber quais são essas ações para fazer a consulta certa. A IFI fará relatórios e interpretações, para divulgar essas informações de uma forma mais palatável. Por exemplo, qual será o peso sobre o Tesouro se o Judiciário conceder uma gratificação relevante para uma determinada categoria.

Dilma, pedalando em Brasília: mal talvez pudesse ter sido evitado
Dilma, pedalando em Brasília: mal talvez pudesse ter sido evitado (Crédito:Divulgação )

DINHEIRO – Isso não vai fazer a IFI ser a instituição mais popular no serviço público. Qual foi a reação do Executivo?

SALTO – Fomos conversar no Ministério da Fazenda e no Ministério do Planejamento. Eles sabem que se a IFI não incomodar, ela não vai servir para nada. Ela tem de ser uma pedra no sapato. Não será uma coisa chata de ficar discutindo minúcias, mas alertar para os cenários e calcular o impacto das coisas. Essa é uma conta que não se faz. Por exemplo, no nosso primeiro relatório, que divulgamos na primeira semana de fevereiro, projetamos um déficit de R$ 182 bilhões para o setor público neste ano, o que supera os R$ 143,1 bilhões que estão previstos no Orçamento. O Ministério da Fazenda já entrou no debate, acha que as nossas projeções são conservadoras, e é bom que haja esse diálogo. O pior dos mundos seria se tivéssemos publicado o relatório e não tivesse havido nenhuma reação. Houve reação da Fazenda e da imprensa, isso mostra que estamos conseguindo colocar o dedo na ferida. Nosso único poder é produzir informação. Nós só latimos, e pretendemos latir muito, mas não podemos morder (risos).

DINHEIRO – Quais contas não são feitas, e deveriam ser?

SALTO – Por exemplo, o impacto das decisões do Banco Central (BC) nas contas públicas. Quanto custa ao País se o BC elevar a taxa Selic em um ponto percentual? Quanto o País economiza se a taxa cair um ponto? Não que o BC deva reduzir os juros de forma voluntarista só para economizar dinheiro, mas é preciso saber o custo disso. O BC tem uma política de câmbio flutuante, e ele faz muita intervenção, então temos de mostrar claramente à sociedade qual é o custo dessa política. Por exemplo, as operações de swap cambial, que o BC fez para atenuar a flutuação do câmbio, deram lucro em 2016, mas custaram R$ 90 bilhões de reais ao País em 2015. Há outros pontos. O Brasil tem mais de US$ 360 bilhões em reservas internacionais, que estão aplicadas em ativos que rendem zero, enquanto o Brasil pratica a maior taxa de juros do mundo. Tudo isso não é transparente para a sociedade

DINHEIRO – E a questão dos impostos?

SALTO – Reforma tributária é um assunto à parte, e teremos uma pessoa só para tratar disso. Vamos nos envolver nessa discussão. Já começamos a trabalhar para mostrar o quanto o País gasta com as desonerações. Temos hoje no Brasil dezenas de regimes especiais de tributação e não há nenhum controle do resultado disso. Quantos empregos essa renúncia fiscal está gerando? Qual o efeito do ponto de vista da renda agregada? Não temos esse número, e mesmo assim os regimes continuam em vigência. Em 2017, segundo a Receita, o gasto tributário, que é quanto estamos deixando de arrecadar com Zona Franca de Manaus, Simples, entidades filantrópicas, pode chegar em R$ 285 bilhões. É dez vezes mais do que o Bolsa Família. E isso é só um começo.

DINHEIRO – Quer dizer que os incentivos, neste ano, podem chegar a quase R$ 300 bilhões?

SALTO – Isso mesmo. O orçamento, tirando as despesas financeiras, é de R$ 1,3 trilhão. As desonerações representam quase 22% do orçamento, ou 5% do PIB. Era só 1% há dez anos. Até o governo anterior, a lógica é que quem batesse mais forte receberia sua boquinha. Chegou a hora de rever isso e podemos estimular esse debate. Por exemplo, quanto está custando o Simples e quanto ele gera de contrapartidas? Emprego, aumento da renda? Essa é a distorção que o sistema tributário gera. O sistema tem de dar os incentivos corretos. Se ele dá os incentivos errados, os agentes econômicos vão lá e se adaptam. Ninguém vai dizer “governo, venha cá e me tribute mais”. Não é racional.

Beneficiários do programa Bolsa Família: custo é 10% do das desonerações
Beneficiários do programa Bolsa Família: custo é 10% do das desonerações (Crédito:Evaristo Sa)

DINHEIRO – Como sanar a crise fiscal?

SALTO – Ela tem três dimensões: salário do funcionalismo, Previdência e gasto financeiro. Essas três agendas são as prioritárias. Não é uma questão de apenas baixar os juros, mas é preciso discutir os efeitos fiscais das políticas monetária e cambial. Temos de discutir reforma tributária, mas qual? Minha opinião é que tem de simplificar o sistema. O ICMS é um imposto caduco. Só no Brasil e na Índia os Estados federados têm a capacidade de tributar o consumo com as próprias regras. São 27 legislações diferentes. Aí você multiplica isso pelo número de produtos que cada estado produz, e para o qual você pode definir a alíquota de desejar.

DINHEIRO – Falando nos Estados, a IFI vai analisar esses números também?

SALTO – Sim. Vamos entrar na questão federativa, pois a crise fiscal dos Estados é muito mais séria e profunda do que a crise da União. Eles têm menos instrumentos que a União, não podem fazer divida, mas eles gastam muito. Entre 2009 e 2015, o gasto com a folha salarial dos Estados aumentou 40% acima da inflação, incluindo ativos e inativos. E houve casos absurdos, como o do Rio de Janeiro, em que esse gasto aumentou 70% acima da inflação. Essa questão salarial tem de ser revista, não dá para continuar achando que os Estados serão provedores de salários que crescem acima da inflação para uma montanha de funcionários.

DINHEIRO – Tem saída?

SALTO – Claro. É preciso investir na gestão, na racionalidade dos gastos, na transparência e na eficiência. Tome os contratos da administração pública com o setor privado: limpeza, compra de materiais. Quanto há de sobrepreço nisso? Vamos nos dedicar a isso também. Eu mesmo fiz um estudo recentemente, analisando quanto cresceu o preço do que a administração pública está consumindo, incluindo salários, em comparação com o setor privado. A conclusão é assustadora: em dez anos até 2014 a diferença é 40 pontos percentuais. Daria para ter economizado de R$ 12 bilhões a R$ 14 bilhões por ano. Em dez anos, a economia seria de R$ 140 bilhões, quase o déficit das contas públicas no ano passado. Por que isso acontece? Na empresa privada eu pago o mínimo possível porque tenho de gerar lucro. Uma prefeitura ou um Estado não tem essa exigência. O preço das coisas fica muito maior do que poderia ser.

DINHEIRO – Pergunta inevitável: qual o orçamento da IFI?

SALTO – Ainda não temos esse número. Neste primeiro ano, nossos gastos estão sendo bancados pelo Senado. O relatório foi impresso no Senado, e três dos sete analistas são funcionários do Senado. Os outros três vieram de outros órgãos, como o IPEA, que paga esses salários. A partir do ano que vem teremos uma proposta orçamentária. Mas já adianto que a operação será enxuta. Tanto que eu até posso trazer mais alguns funcionários, mas estou segurando as contratações