Chapéu panamá, pasta de couro nas mãos, paletó sem gravata, o Lula que desembarcou em Cuba na semana passada parecia um investidor estrangeiro à procura de boas oportunidades de negócio. Entre um mergulho e outro nas praias de Varadero, um balneário na costa leste da ilha, e um encontro ou outro com o amigo Fidel Castro, Lula foi ver de perto, mais uma vez, o modelo econômico cubano. Antes de partir, revelou os resultados de suas observações. ?Para o Brasil, não vale a pena aplicar o modelo cubano nem o francês?, disse. ?Temos de encontrar o modelo brasileiro.? Afinal, o que Lula viu lá? Viu um modelo que, em doses homeopáticas, afasta-se dos cânones socialistas clássicos, com o desembarque de companhias multinacionais, o uso livre do dólar, o surgimento de pequenos empreendedores e, até, incentivos para melhoria da produtividade e eficiência. Será que o país de Fidel está abandonando o socialismo? Não, e está longe disso. O Estado mantém o controle absoluto sobre todas as atividades econômicas do País, seja pela participação acionária, seja com uma avalanche de leis, regras e regulamentações ? e, talvez por isso, Lula concluiu que dificilmente esse sistema teria afinidades com o Brasil de hoje. Mas acredita que do lado social há o que aprender. ?Não há outro país da América Latina que tenha conseguido distribuir o pouco que tem de modo tão uniforme?, disse ele.

As mudanças no modelo cubano têm origem menos no campo da ideologia e mais na necessidade de sobrevivência. Em 1989, as marretadas que destruíram o Muro de Berlim derrubaram também a economia cubana. Com o desmantelamento do bloco socialista, destino de 85% das exportações do país, Cuba quebrou. Nos três anos seguintes, o PIB despencou 38%. O governo estabeleceu uma economia de guerra, batizada de Período Especial en Tiempos de Paz. Empresas e residências só tinham energia elétrica disponível de 12 a 14 horas por dia. Uma ração especial, à base de soja, foi criada e era distribuída à população. ?Nunca havíamos enfrentado uma situação tão grave desde que os Estados Unidos determinaram o embargo comercial a Cuba no início da década de 60?, diz Carlos Lage, vice-presidente do país.

Ao lado de Raul Castro, irmão de Fidel, Lage é hoje um dos mais destacados líderes do regime cubano. Pertencente a uma segunda geração de revolucionários, ele é uma espécie de czar da economia do país, dono de um discurso pragmático, no qual defende os investimentos estrangeiros e o mergulho de Cuba na economia globalizada. Diante de públicos externos, ataca a ineficiência das estatais e elogia a ?tecnologia de gestão? das empresas multinacionais. Anos atrás, suas idéias provocariam arrepios em militantes e dirigentes comunistas. Hoje, parecem ser uma unanimidade. Motivo: desde 1995, o País registra crescimento. No ano passado, o salto foi superior a 7%. Este ano, serão mais 4,5%. Muito bom, mas insuficiente para compensar as perdas depois da queda do Muro. Lage montou uma complexa política monetária, na qual convivem três moedas ? o peso, o dólar e um certo peso conversível. O primeiro passo foi liberar a circulação do dólar no país. Assim, a moeda americana passou a conviver com a local, o peso. Alguns analistas consideram a liberação uma jogada de mestre. Com ela, a cotação despencou de 180 pesos para os atuais 20 pesos. Além disso, os cubanos refugiados nos Estados Unidos passaram a remeter dinheiro para seus familiares no País. Estima-se que, nos últimos anos, cerca de US$ 1 bilhão já entrou na Ilha por esse caminho ? uma fortuna para um país com PIB de US$ 15 bilhões. ?A dupla circulação monetária tem um caráter transitório?, diz Lage. ?Não se constitui em uma fórmula para solucionar os problemas, e sim um trânsito necessário para estimular a economia.?

 

A estrada dessa transição é o peso conversível, cujo valor equivale a um dólar. Segundo o governo, trata-se de uma travessia rumo a uma moeda mais estável. Para executivos de multinacionais instaladas na Ilha, é um instrumento de dolarização da economia. Há regras para a utilização de cada uma das três moedas, de acordo com algumas peculiaridades da economia cubana. Há, na realidade, dois mundos convivendo em Cuba. Em cada um deles, há todo tipo de comércio e serviços, de lojas a táxis, de restaurantes a padarias. Um deles, o chamado ?mercado de divisas?, aceita apenas o dólar e o peso conversível. Suas lojas são abastecidas com produtos importados e lembram, com certa boa vontade, o varejo dos países capitalistas. Nesse mundo, os táxis são mais novos e os restaurantes possuem decoração e serviço mais caprichados. Nele circulam principalmente turistas e executivos de multinacionais. Mas é possível encontrar um ou outro cubano. É um quadro diferente do outro mercado, o de peso, onde apenas a moeda local é válida. Nesse caso, os estabelecimentos são despojados e a oferta de produtos, exclusivamente cubanos, restringe-se aos componentes da cesta básica. A grande vantagem são os preços subsidiados pelo governo

A liberação do dólar abriu caminho para a segunda iniciativa do pessoal de Fidel: o investimento estrangeiro. As multis podem investir em qualquer setor, com exceção da educação, saúde e forças armadas. O maior pólo de atração é o turismo. Redes de hotelaria como a espanhola Meliá e a francesa Accor já fincaram seus pés na Ilha. Marcas como Beneton e Samsung são encontradas em lojas da capital. Na indústria, as regras são mais rígidas. Só entra quem fizer uma associação com o governo cubano, na base de 50% a 50%. Parcela do lucro é distribuída entre os funcionários. Hoje, existem cerca de 380 associações desse tipo. Por esse canal, já entraram mais de US$ 2 bilhões de investimentos no País. Poderia ser mais, se o bloqueio americano não tivesse tanto poder destrutivo. Em função dele, as grandes companhias marítimas não incluem Cuba em seus roteiros, encarecendo o frete para os exportadores em pelo menos 15%. Mais: as transações internacionais não podem ser feitas em dólar, pois o governo americano bloqueia remessas para Cuba.

Empreendedores. É para fugir dos efeitos maléficos do bloqueio que o governo cubano abriu outras brechas no ideário socialista. Agora, os cubanos podem ter negócios próprios ? de acordo com certas regras. Os empreendimentos devem funcionar na casa do proprietário. Funcionários não podem ser contratados para não se caracterizar a relação patrão-empregado. A regulamentação chega às minúcias. No caso de pequenos restaurantes, batizados de paladares, até o número máximo de mesas, 12, é definido por lei. O nome paladar foi extraído da novela brasileira Vale Tudo, na qual Regina Duarte interpreta a dona de um restaurante chamado Paladar. Foi um sucesso em Cuba.

Os cubanos passam por cima dessas regras e o governo faz vistas grossas. É um desafogo para um país com índices de pobreza assustadores. A renda per capita é pouco superior a US$ 1,3 mil. O salário médio não ultrapassa US$ 20 mensais. Os cubanos ponderam que têm acesso à educação, saúde e habitação e não tiram sequer um centavo do bolso para isso. A cesta básica, distribuída à população, custa o equivalente a um dólar. É provável que esse seja o modelo que mais atraiu Lula em sua viagem.